Mostrando postagens com marcador Almodóvar. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Almodóvar. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 25 de março de 2022

Longa jornada noite adentro contra o machismo e outras intolerâncias

Quando pensei em escrever este post, estava impactada pela notícia de um estupro coletivo que aconteceu no Carnaval deste ano, em Buenos Aires, em pleno bairro boêmio de Palermo. Uma jovem deixou uma boate local na companhia de rapazes que viajavam de carro pela Argentina e foi estuprada por eles no interior do veículo, diante de uma padaria do bairro. Não sabemos se ela estaria viva pra contar a história se os donos da padaria, que estavam ali para abrir o estabelecimento pela manhã, não tivessem visto a estranha movimentação no interior do veículo e constatado, aterrados, que ali acontecia um estupro. Munidos de vassouras e aos gritos, marido e mulher avançaram contra os criminosos, que tentaram fugir, mas foram impedidos por outras pessoas da vizinhança. A moça estava tão dopada que disse não saber como tinha ido parar ali, mas percebeu, entre flashes de consciência, que estava sendo estuprada. Nem sei nomear o que sinto com uma notícia dessas.
Pouco tempo depois, um deputado bolsonarista-morista, que supostamente teria ido à fronteira da Ucrânia com a Polônia como integrante de um grupo de ajuda humanitária, declarou que as mulheres ucranianas eram "fáceis" porque eram pobres. Mesmo tendo sido punido pelo partido e pela opinião pública, é desolador que essa ainda seja uma visão de boa parte dos homens - no Brasil, inclusive, estimulada pela onda ultraconservadora que cobriu o país. Dói ouvir que há puta em toda parte, que esta seja a resposta automática diante do absurdo expresso pelo político. 
Como o machismo não dá trégua, sobrou até pra Pedrito Almodóvar, a quem declarei de novo meu amor outro dia. Li um artigo pouco depois que chamava a atenção para a visão feminista torta em Madres paralelas, e acho que há uma certa razão quando se critica a construção da personagem de Penélope Cruz (que "usa" a jovem apaixonada por ela e ainda volta para o homem que duvidou da sua paternidade), mas mais ainda para a presença do estupro em alguns filmes do espanhol - Atame, Kika, Fale com ela, Volver, A pele que habito. No caso de Madres paralelas, até podemos pensar nas contradições vividas pelas mulheres até hoje, de se relacionarem erraticamente com boys lixo ao mesmo tempo que lutam por sua liberdade, afinal, ninguém é perfeito mesmo. Mas no caso dos outros filmes, e só falo dos casos de que me lembro, vê-se o olhar machista que persiste até mesmo em quem certamente foi vítima desse machismo. 
Só para exemplificar a extensão da jornada-luta contra o machismo, indico o magistral documentário da Netflix baseado nos diários de Andy Warhol, editados por sua secretária Pat Hackett e lançados pouco depois da morte do artista. As imagens de época e os textos dos diários lidos por um artista que teve a voz modificada por inteligência artificial para se assemelhar à de Warhol são emocionantes e nos aproximam de uma época efervescente - também varrida pela onda conservadora - e de um homem solitário e provocador, revolucionário e contido, um nome fundamental para a completa transformação da arte contemporânea e da cultura de massas em todo o mundo. É tristíssimo que Andy não possa ter vivido o amor de forma plena, sufocado pelo preconceito de sua criação e da sociedade ao redor, que ele, que resistiu a uma saraivada de tiros, tenha assistido à morte de tantos amores e amigos, vitimados pela Aids, esse tsunami de horror dos anos 1980. Até mesmo Andy Warhol, homem branco, genial, bem inserido no circuito cultural novaiorquino, sofreu os revezes do machismo, muitas vezes de si contra si. 
O machismo mata sempre. Quem for a favor da vida, do amor, da liberdade, do futuro, não pode ser a favor do machismo.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A urgência de Almodóvar e Campion nos dias de hoje

Uma das poucas certezas que tenho na vida é que amo Pedro Almodóvar. Pode até haver um filme dele que acho mediano, mas, de modo geral, no cômputo final, amo seu trabalho. Sempre me surpreendo, feliz, com as camadas que vou desvendando a cada película. Adoro as nuances hitchcockianas mais coloridas de seus closes e recortes, suas trilhas dramáticas ou tropicalmente alegres, mas principalmente suas personagens tão humanas e suas tramas profundas por mais corriqueiras que pareçam. Achei que não era possível amar mais, mas acabo de ver Madres paralelas, com Penélope Cruz. O feminismo, sempre presente na obra de Almodóvar, aparece devidamente repaginado, com questões LGBT urgentes, maternidade, estupro, identidade e a luta principalmente das mulheres para que a memória da violência não se perca - caso do reconhecimento dos corpos enterrados em uma cova de um povoado, nos primeiros dias da Guerra Civil (para mim, desde sempre, um período histórico de grande interesse). Absolutamente necessária hoje a fala de Janis, personagem de Penélope, para a jovem Ana (Milena Smit), de que ela deveria saber de que lado estava sua família durante a guerra e que esta não cessaria enquanto os corpos dos mais de 100 mil desaparecidos ao longo do regime franquista não pudessem ser enterrados por seus familiares. Aquele calor no coração que o chamado por justiça provoca, ai. Mas tenho certeza de que muita gente hoje em dia vai detestar esse chamado por justiça e liberdade de Almodóvar, como detestará também o filme de Jane Campion com 12 indicações ao Oscar, o maravilhoso Ataque dos cães
No caso de Campion, cria-se uma expectativa acerca da temática de seu filme, aparentemente um faroeste, porque o filme é ambientado em Montana, na verdade Nova Zelândia. Tudo parece ser, mas não é. O título em português irritou os não entendedores - o original é The power of the dog, homônimo do romance de Thomas Savage. Embora sim, o nome em inglês se relacione com a passagem bíblica apontada por Peter, personagem do excelente Kodi Smit-McPhee, não se perde em nada a metáfora do cão-demônio que ameaça a paz do casal Rose e George, vividos lindamente pelo casal na vida real Kirsten Dunst e Jesse Plemons (um dos meus atores favoritos no momento) - aliás, que cena mais delicada do mundo a de Rose e George tomando chá e dançando na planície! Não preciso nem comentar o trabalho do querido Benedict Cumberbatch, que tem a mesma habilidade de seu conterrâneo Ralph Fiennes para expressar um sofrimento arduamente contido. Se em Madres paralelas vemos as mulheres prontas para tudo - para lutar, para amar, para pedir ajuda, para enfrentar as consequências da verdade, seja qual for -, em Ataque dos cães, assistimos ao mundo machista engolindo a si mesmo por não aguentar a claridade ofuscante da verdade. 
Como dois filmes tão diferentes podem ter coisas em comum? Mais ainda: por que ambos podem ser tão importantes nos dias de hoje? A escrita do desejo proibido de Campion encontra a liberdade de ser de Almodóvar, e os dois caminham na busca da verdade, esse bem tão vilipendiado hoje, deformado a serviço de impostores, intolerantes, covardes. Porém, é importante que se diga que, embora Campion e Almodóvar lancem luzes sobre o obscuro, cabe somente a nós vermos. 

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

Arquivo do blog