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quinta-feira, 18 de julho de 2024

Alice Munro, Virginia Woolf e Mary Oliver

Há uns quatro anos topei com As luas de Júpiter na Livraria Cultura. Gostei do título, não conhecia nada da canadense Alice Munro (que nos deixou este ano), embora o nome não me soasse estranho. Mas foi só há dois anos que fui atrás do título pelo Kindle. Comecei a ler muito tempo depois, e parei. Retomei o ano passado, achando, por algum motivo, que tinha relação com a inglesa Virginia Woolf, cujo Um teto todo seu eu tinha acabado de ler.
Talvez a única relação com Woolf tenha sido a de um conto, "Dulse", tratar justamente de uma editora, uma quase poeta. Aliás, conto dolorido em vários aspectos - a mulher desajeitada de si mesma, querendo caber no universo de um homem que ela nem sabe se é essa cocada toda etc. Talvez esse malajambramento é que tenha me remetido a Woolf, que defende em Um teto todo seu que a mulher tenha autonomia, que tenha direito a um espaço tranquilo para desenvolver seus talentos, sem ficar presa à rotina de cuidados imposta pelo patriarcado. Virginia, tão à frente do seu tempo, vista apenas como louca por muita gente - aliás, fui ver a montagem de Claudia Abreu com texto escrito pela atriz; talvez, para quem não sabe muito de Virginia Woolf, tenha ficado só a impressão de que foi uma escritora suicida, que não batia bem dos pinos. 
Na forma muito diferente de Woolf e Munro, a poesia da norte-americana Mary Oliver também me chegou outro dia, já não sei por que vias. Oliver se inspira muito na natureza, nos ciclos naturais, num certo apaziguamento diante da vida quando integrada à natureza. Mas vejo-a em perfeito diálogo com as outras duas, talvez aconselhando-as em suas aflições, apoiando-as em suas decisões. Dizendo a Woolf que tudo vai ficar bem, ajudando a personagem de Munro a se reconectar consigo. Como no poema "The Journey", que me atrevi a traduzir e que veio até mim na forma de um clarão (como a maioria das coisas que importam):

Um dia, você enfim soube

o que tinha que fazer, e começou

embora as vozes ao seu redor

continuassem gritando

seus maus conselhos

embora a casa toda

começasse a tremer

e você sentisse

o velho puxão nos seus tornozelos.

“Conserte minha vida!”,

cada voz gritava.

Mas você não se deteve.

Você sabia o que tinha que fazer,

Embora o vento se infiltrasse

Com seus dedos rígidos

Até as mínimas fundações

Embora a melancolia delas

Fosse terrível.

Era já bastante tarde, e a noite selvagem,

E a estrada repleta de galhos caídos e pedras.

Mas, pouco a pouco,

À medida que você deixava as vozes para trás,

As estrelas começaram a queimar

Através das camadas de nuvens,

E havia uma nova voz

Que você lentamente

Reconheceu como sua,

Que ficou em sua companhia

Enquanto você caminhava

Mais e mais profundamente

No interior do mundo

Determinada a fazer

A única coisa que você poderia fazer.

Determinada a salvar

A única vida que você poderia salvar.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Carla Madeira e a literatura que é rio

Outro dia, minha cunhada comentou sobre a entrevista de Carla Madeira no Roda Viva e disse que tinha se interessado em ler seu livro Tudo é rio. Lembrei-me de já ter topado com o título em algum momento e também ter me interessado pela história (que já não lembrava) e pelo título (porque, embora tenha medo de águas escuras de rio e um temor recente do mar, amo a imagem das águas). Ainda nem sabia que Carla Madeira, escritora e jornalista mineira, tinha se tornado uma das autoras mais lidas do país. 
Carol propôs então que todas nós (eu, ela, Nana e minha sogra) lêssemos o livro para conversar sobre ele. No meio de uma tarde de muito tédio com um trabalho chatíssimo, que já passou da hora de ter fim, comecei a ler. Não consegui parar até terminá-lo, em dois dias. 
A experiência que tive, de chegar às lágrimas, me fez lembrar de outros livros igualmente devorados. Eu ouviria as piores notícias dos seus lindos lábios, do Marçal Aquino, tem uma energia parecida, de encontro e desencontro de amantes, uma pitada de tragédia e uma ponta de esperança. Mas Tudo é rio tem mais personagens interessantes, todas construídas com um cuidado carinhoso da autora - a gente se sente próximo de todo mundo ali, quase adentrando as casas para um cafezinho. Embora não se diga onde se passa a história, imagino que seja em uma pequena cidade mineira. Talvez a casa de Manu pudesse abrigar a própria Hilda Furacão, mas abriga Lucy, a personificação do desejo sem limites. 
O livro de Carla foi além das minhas experiências intensas anteriores porque não me emocionou somente por identificação com a situação emocional de uma personagem (por exemplo, quando tirei da estante da biblioteca da FFLCH - que saudade daquela biblioteca! - A paixão segundo G.H. foi porque a lombada do livro praticamente se atirava sobre mim, e desde a primeira página foi um turbilhão, a liberação de um mar de lágrimas, pois Clarice falava diretamente comigo, naquele momento, naquela imensa solidão). Também não foi porque me identificasse com um aspecto específico das personagens - como a miopia de Miguilim em Campo geral, e os óculos que são passaporte para um novo mundo, uma outra viagem, agora sem o irmão e companheiro Dito. Poderia, talvez, dizer que Tudo é rio me provoca algo parecido com o experimentado em Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, quanto ao poder de uma mulher, a única a ver, e a luz que há na solidariedade, que sempre, sempre me emociona - no livro de Carla Madeira, há mãe e filha com clarividência no sentir, portadoras do milagre do perdão.
O que quero dizer é que, para além das minhas conexões aparentemente forçadas entre este livro e os outros, o de Carla me tocou profundamente porque é tão bem escrito que nos leva a caminhar, amar, viver como as personagens, e essa sensação de adentrar uma história sem ser totalmente tomada por um tsunami há tempos eu não tinha. Não fui só levada pelas águas - o rio de Carla Madeira, mesmo com vórtices de paixão, me permitiu também nadar junto, respirar na superfície, descansando na narrativa (uma espécie de trégua?), e assim observar a paisagem ao redor e também a interior, sem perder um minuto de toda sua beleza. 

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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