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sexta-feira, 14 de março de 2025

Do amor à escrita

Como comentei por aqui, no 8 de Março participei de uma oficina online de escrita promovida pela Caixa Cultural de Salvador, somente mulheres, com a ótima Marília Librandi, que eu não conhecia e me encantou pela profundidade suave com que conduziu tudo. Me tocou especialmente sua fala de ter enfim se tornado aquilo que ela sempre soube ser: escritora. 
Quando eu era pequena, tinha uma certeza na vida: de que seria escritora e/ou artista. Amava desenhar e, um pouquinho maior, não via outro destino possível que não fosse o da escrita. Isso foi sempre incentivado, mesmo de modo indireto, por meus avós e minha mãe, e professores. Até a volta de meu pai ao nosso convívio, quando eu era pré-adolescente. Ele chegou e, sem ser convidado para jogar, derrubou as peças do tabuleiro, dizendo que eu era muito medíocre para ser desenhista. Não desisti completamente, indo desenhar casas e prédios no colégio; insisti mais na escrita, chegando a ganhar alguns concursos de conto e redação, desde o Ensino Médio, e prosseguindo, até porque comecei a trabalhar com revisão de texto no início da faculdade. 
Mas houve um momento que parei. Talvez pelo senso crítico desenvolvido no trabalho de revisora, mas sinto, hoje, que a ferida aberta pelo desamor e escárnio paternos tem seu papel nessa longa pausa. Nunca, nunca devemos subestimar o poder dessas feridas, mas não podemos deixar que seja maior que o nosso poder de superá-las, de olhá-las por cima do ombro, como faria Valeska Popozuda. 
Acho que a pandemia foi o momento de olhar para a ferida, mesmo não propositalmente - foi porque ali, naquele momento, com questões internas e externas, parei para retomar o que era importante para mim, aquilo que a menina que trago em mim acreditava que fosse o essencial. Sem o que eu não poderia viver? A arte gritou com força lá das profundezas. Conhecimento, viagens. Desenhar. Escrever. Me vi como a menina agarrada com o livro-amante nas ruas de Recife de "Felicidade clandestina". Santa Clarice, sempre a clarear os caminhos.
Fui atrás de uma pós em literatura infantojuvenil, um vício em querer me especializar. Mas não rendeu muito - conteúdo bom, estrutura confusa, pouca interação -, então desisti. E também não é bem assim que funciona, penso. Não precisa ser. 
Voltar a desenhar tinha acontecido há uma década, de forma despretensiosa, para enfrentar uma crise emocional. E não foi mais embora (o desenho, não a crise, que se resolveu, graças à deusa). Agora é a escrita que parece querer voltar depois desse encontro com mulheres tão potentes, talentosas e desarmadas para o encontro consigo. De minha parte, sempre algo a aprender, sempre essa incompletude que, se às vezes me angustia diante do todo imenso que é viver, acaba sendo meu combustível para a própria vida, a busca incessante, o caminho que se faz ao andar, peripateticamente (aliás, tive que escrever sobre Aristóteles dia desses e pensei, nos meus delírios, que ele, com suas caminhadas e apreço pelas regras e pela ética, deveria ser filho de Ogum!). 
O exercício proposto por Marília no 8 de Março para a escrita foi perfeito: simplesmente escreva, sem pensar demais. Aceitar o fluxo, deixar virem as águas, como as pororocas tsunâmicas dos meus sonhos. Escrevamos.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Carla Madeira e a literatura que é rio

Outro dia, minha cunhada comentou sobre a entrevista de Carla Madeira no Roda Viva e disse que tinha se interessado em ler seu livro Tudo é rio. Lembrei-me de já ter topado com o título em algum momento e também ter me interessado pela história (que já não lembrava) e pelo título (porque, embora tenha medo de águas escuras de rio e um temor recente do mar, amo a imagem das águas). Ainda nem sabia que Carla Madeira, escritora e jornalista mineira, tinha se tornado uma das autoras mais lidas do país. 
Carol propôs então que todas nós (eu, ela, Nana e minha sogra) lêssemos o livro para conversar sobre ele. No meio de uma tarde de muito tédio com um trabalho chatíssimo, que já passou da hora de ter fim, comecei a ler. Não consegui parar até terminá-lo, em dois dias. 
A experiência que tive, de chegar às lágrimas, me fez lembrar de outros livros igualmente devorados. Eu ouviria as piores notícias dos seus lindos lábios, do Marçal Aquino, tem uma energia parecida, de encontro e desencontro de amantes, uma pitada de tragédia e uma ponta de esperança. Mas Tudo é rio tem mais personagens interessantes, todas construídas com um cuidado carinhoso da autora - a gente se sente próximo de todo mundo ali, quase adentrando as casas para um cafezinho. Embora não se diga onde se passa a história, imagino que seja em uma pequena cidade mineira. Talvez a casa de Manu pudesse abrigar a própria Hilda Furacão, mas abriga Lucy, a personificação do desejo sem limites. 
O livro de Carla foi além das minhas experiências intensas anteriores porque não me emocionou somente por identificação com a situação emocional de uma personagem (por exemplo, quando tirei da estante da biblioteca da FFLCH - que saudade daquela biblioteca! - A paixão segundo G.H. foi porque a lombada do livro praticamente se atirava sobre mim, e desde a primeira página foi um turbilhão, a liberação de um mar de lágrimas, pois Clarice falava diretamente comigo, naquele momento, naquela imensa solidão). Também não foi porque me identificasse com um aspecto específico das personagens - como a miopia de Miguilim em Campo geral, e os óculos que são passaporte para um novo mundo, uma outra viagem, agora sem o irmão e companheiro Dito. Poderia, talvez, dizer que Tudo é rio me provoca algo parecido com o experimentado em Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, quanto ao poder de uma mulher, a única a ver, e a luz que há na solidariedade, que sempre, sempre me emociona - no livro de Carla Madeira, há mãe e filha com clarividência no sentir, portadoras do milagre do perdão.
O que quero dizer é que, para além das minhas conexões aparentemente forçadas entre este livro e os outros, o de Carla me tocou profundamente porque é tão bem escrito que nos leva a caminhar, amar, viver como as personagens, e essa sensação de adentrar uma história sem ser totalmente tomada por um tsunami há tempos eu não tinha. Não fui só levada pelas águas - o rio de Carla Madeira, mesmo com vórtices de paixão, me permitiu também nadar junto, respirar na superfície, descansando na narrativa (uma espécie de trégua?), e assim observar a paisagem ao redor e também a interior, sem perder um minuto de toda sua beleza. 

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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