Mostrando postagens com marcador Chico Buarque. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Chico Buarque. Mostrar todas as postagens

domingo, 4 de maio de 2025

Olha a veia que salta, olha a gota que falta

Fui assistir no feriado do trabalhador à montagem de Gota d'água da Companhia Baiana de Teatro Brasileiro, no Teatro Martim Gonçalves. Outro dia, houve a Medeia negra no campus de Ondina da UFBA, mas não consegui me programar para assistir. O fato é que, para sorte dos que amam o teatro, a heroína trágica de Eurípides não perde nunca sua importância. 
Embora já tivesse assistido a Medeia, com Juliana Galdino em 2005, no SESC Belenzinho, e no filme de Pasolini, com Maria Callas, eu ainda não tinha visto, mesmo conhecendo o texto de Paulo Pontes e Chico Buarque, nenhuma montagem de Gota d'água. A atuação de Evana Jeyssen é visceral, como se espera de Joana-Medeia, mas é quase desesperada, no limite, sem perder, contudo, o controle corporal impressionante, como bem pontuou Liu. Evana e Augusto Nascimento dividem o palco, alternando os papéis de Joana e Jasão com o Coro de vizinhos e Creonte, num cenário enxuto, um círculo de areia, que é praia, rua, casa, tempo que escorre dos baldes-ampulhetas espalhados pelo urdimento, mas principalmente arena (feliz escolha etimológica) onde se dão os confrontos desamorosos. 
Fiquei tão mexida que fui rever Callas no filme de Pasolini e acabei encontrando uma versão japonesa, do diretor Yukio Ninagawa, encenada no Epidauro, imagine, na pura tradição do kabuki, portanto apenas com atores do sexo masculino. 
A trama da mulher que sofre por ser abandonada em um país estrangeiro depois de ter dado tudo ao amante tem muitas camadas, como dizemos hoje: ela é estrangeira duas vezes - depois de deixar Cólquida, a terra natal, para ficar com Jasão em Iolco e, então, quando fogem para Corinto depois de serem perseguidos pelos súditos de Pélias, rei de Iolco e tio de Jasão. Medeia é hostilizada por ser forasteira e por suas práticas de magia, que teriam ajudado Jasão a conseguir o Velocino de Ouro e a matar Pélias, que disputava com o sobrinho o trono de Iolco. Jasão, embora ele também estrangeiro, arranja casamento com a filha do rei de Corinto, Creonte, e abandona Medeia com seus dois filhos. Creonte exige que ela vá embora, ou seja, que siga sem lugar no mundo, desterrada. O final, nós conhecemos, e sempre há o desconforto, justificado, diante da decisão de Medeia, que tira de Jasão a única coisa que ela lhe dera que ainda o interessava - os filhos, a dinastia.
É um fato raro que mães matem os filhos - embora aqui e ali haja uma notícia assim, nada que se compare à quantidade assustadora de homens que matam ex-mulher e filhos -, e Medeia não trata apenas disso, embora seja o que nos choque à primeira vista. Para muitos, talvez essa trama ainda seja apenas uma reação extrema da mulher traída. Hoje, mais que nunca, o que vejo nela é a opressão feminina em pleno "século do ouro" ateniense. Impossível ouvir Chico Buarque, já que o mencionei, cantando "Mulheres de Atenas" e não ter um ranço dos atenienses machistas, que dominavam as mulheres como também os estrangeiros e os escravos, nenhum deles visto como "cidadão". Impossível assistir a Medeia e não pensar em como, até hoje, mulheres, por mais poderosas que sejam, dependem de que os poderosos de fato ditem os rumos de sua vida, limitando o exercício de sua cidadania. Na verdade, uma gota da raiva de Medeia/Joana, sem sequer derivar para a violência, é o suficiente, vem a calhar para mudar a realidade das mulheres. A gota que falta.

https://aefestival.gr/wp-content/uploads/2018/05/medeaea.jpg 

https://lh6.googleusercontent.com/proxy/mgStubHhuWX4t-6jRCG4IDTNeuSXfmkEEORe2CPQHAq0auni_QfrNNDN5kuYqL3HRCyDCM6aN9frwNsnfaaNY0olWwKtegUT9F3U99_Mb0OhjWWeJgU 

https://www.satisfeitayolanda.com.br/blog/wp-content/uploads/2012/03/medeia.antunes.jpg

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Alegria e tristeza de Chico

Na semana passada, fui assistir à maravilhosa Angela Velloso, acompanhada do papis Duarte Velloso, no Cinesom, cantando Chico Buarque. Angela aplicou sua verve jazzística às músicas de Chico e ficou tudo lindo. Chico, o geminiano tímido com ares traquinas, ficaria feliz da vida. Certamente não gostaria de saber, contudo, que, quando Duarte Velloso puxou um "sem anistia", não recebeu de volta o coro comme il faut, como seria de se esperar de uma plateia que sabia todas as músicas de Chico Buarque, sendo a maioria delas de cunho político. Eu fiquei escandalizada, imagine o poeta - passaria de um estado de euforia para enorme tristeza em segundos. 
Mas tudo bem, Angela, Duarte e Chico - nós, que rejeitamos a anistia para golpista, ainda estamos aqui.


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Junho

Junho é um mês querido, que lembra calor humano no meio de temperaturas mais baixas. Mês dos santos Antonio, João e Pedro, me lembra a infância com quadrilhas e quermesses em escola e igreja. Em São Paulo, as festas juninas não têm a escala das do Nordeste, que, aliás, ainda não conferi, como em Caruaru ou mesmo no interior da Bahia. Mas fica o aconchego nas ruas, aonde quer que se vá, com pessoas se desejando um "feliz São João", quase como se fosse Natal. 
Marisa me mandou um texto maravilhoso do sempre precisamente poético Luiz Antonio Simas, sobre a transformação de um homem implacável, João Batista, primo de Jesus, em um santo menino, de cachinhos e acompanhado de um carneirinho, justamente a imagem que festejamos em junho, no dia 24, na segunda festa mais importante da Bahia depois do Carnaval. Um verdadeiro milagre popular essa transmutação da raiva em amor. 
Junho também é mês de aniversário de Chico Buarque, que este ano completou 80 primaveras musicais. Nem escrevi nada a respeito porque li tanta coisa bonita em toda parte, toda gente do bem se lembrando de trechos da obra do gatão de olhos verdes, olhos de ardósia, nas palavras de Jobim! Me deu uma alegria imensa, tanto a homenagem enorme ao homem e artista Chico, quanto me lembrar junto com todas essas pessoas das músicas maravilhosas de Chico artista e homem, homônimo de outro santo que me fala ao coração, e do Opará querido, e do meu gatito irmão de Zen, sempre no coração.
Em junho, só passei de raspão por um forró no Santo Antonio, mas foi o suficiente para aquecer a alma, tão precisada desse calor.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Quem fala?

Acabei de ler outro livro de Elena Ferrante, Dias de abandono. Assim como em outras narrativas (os livros da tetralogia napolitana, A filha perdida, Mentiras que os adultos contam), há o contraponto entre a vida pobre em Nápoles e uma nova vida proporcionada pelo conhecimento, além dos desencontros amorosos. Mas aqui, desde a primeira página, há um quê de Simone de Beauvoir em A mulher desiludida - o que se confirma quase ao final, numa menção direta ao livro da filósofa e escritora francesa. 
Ambas, Ferrante e De Beauvoir, constroem uma narrativa do ponto de vista da mulher adulta que se vê diante de mudanças na vida a dois, com a chegada da maturidade e o surgimento de outro interesse amoroso ou outra meta por parte do companheiro. Não é difícil mergulhar nas narrativas de ambos os livros, identificar-se, sentir o mesmo, inclusive a perda do senso de realidade que há em Dias de abandono. O lugar de fala das personagens (nem estou falando das autoras, considerando aqui que Ferrante seja mesmo uma mulher) ajuda a fazer esse mergulho, pois soa bem convincente.
A propósito do assunto lugar de fala, há pouco tempo aconteceu uma suposta polêmica com Chico Buarque sobre sua canção "Com açúcar, com afeto", composta a pedido de Nara Leão, que a interpretava lindamente. Depois li uma entrevista de Chico dizendo que não houve polêmica, que ele desconhecia haver feministas revoltadas contra ele pelo teor machista da canção, que ele não disse que nunca mais cantaria a canção por conta disso. Produziu-se uma celeuma em torno de algo que não houve (é fake news que chama?). Chico disse que não canta mais porque é impossível continuar cantando todas as mais de 400 composições de sua autoria, e que essa música já tão datada não era mais cantada nem por Nara, que provavelmente a abominaria hoje. 
Um amigo meu, professor de literatura, escreveu que Chico quis retratar uma mulher que vive aquele tipo de relacionamento, está ciente dele, mas no final ela é que domina a coisa toda. É um ponto de vista. Concordo que a personagem parece ter consciência do que vive, o que não quer dizer que não sofra. Porém, como afirma Chico na entrevista, não há mais lugar para a mulher que se lamuria, que deixa de conquistar seu espaço por causa de um homem. Chico não tem, é claro, esse lugar de fala, porque é homem, mas, como artista, pode criar qualquer personagem. Como artista, pode ser que conceba personagens pouco convincentes, que erre a mão, não só em questões de gênero, mas de classe social e de raça. Mas, vejam só, Chico sempre foi elogiado por cantar a alma feminina como ninguém. Ainda acho que consegue, e ele se mostra consciente das mudanças femininas e feministas no tempo. A cantora Marília Mendonça, que morreu precoce e tragicamente, aos 28 anos, vinha mostrando o lado feminino do sertanejo, muitas vezes sofrido, nem sempre libertário, mas verdadeiro. Talvez isso seja justamente o que mais cativa, o que mais importa - a verdade iluminadora trazida pela ficção. 

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

Arquivo do blog