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domingo, 5 de março de 2023

"Ah, se eu pudesse"

Na semana passada, assisti ao longo longa Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, com os ótimos Michelle Yeoh (O tigre e o dragão, Chang-shi e a lenda dos dez anéis, Memórias de uma gueixa, Podres de ricos) e Ke Huy Quan (Goonies e Indiana Jones e o Templo da Perdição) - aliás, foi a volta triunfal do ator, afastado há anos do cinema e agora vencedor do Globo de Ouro e do SAG Awards e indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante. 
O filme tem incríveis sequências de luta, efeitos especiais e figurinos e ótima direção, embora pudesse ser realmente menos longo. De qualquer modo, além da representatividade oriental necessária, o que me chamou a atenção no filme foi a temática do "e se eu pudesse voltar atrás", algo que não deixa nunca de figurar em algum filme ou livro mas tem sido mais reincidente na atualidade, especialmente com o fortalecimento da teoria dos universos paralelos. Já vimos isso em Interestelar, e mais atrás, em outra medida, em Feitiço do tempo, além de uma infinidade de outros títulos menos ovacionados. 
Outro dia, ainda, li o livro de ganhei de minha amiga-Thelma-secreta Kate, A biblioteca da meia-noite, de Matt Haig, um título que me chamou a atenção (amo livros sobre livros, filmes sobre livros) em alguma livraria e por isso escolhi como presente. A protagonista desiste, aos 30 e poucos anos (cedíssimo), de sua vida sem sentido e resolve dar cabo dela. Acaba despertando numa estranha biblioteca dirigida por uma bibliotecária que ela conheceu no passado e que oferece à jovem a chance de escolher um livro com um diferente enredo para sua história. Embora bastante teen no início, o romance vai ganhando força a cada vida experimentada (ela tem uma biblioteca inteira à disposição, lembram?), e a constatação a que a jovem chega (spoiler) é que a melhor vida é aquela da qual ela queria desistir, porque, como diz o sempre preciso Gil, "o melhor lugar do mundo é aqui e agora". 
Eu não chego a ter arrependimentos que me levem a esse tipo de questão - como seria se eu tivesse feito outra escolha? - até porque no fundo me pauto numa fala do eterno mestre Nicolau Sevcenko, a de que a história é fato, o "se" é ficção, literatura. Mas é claro que, ciente de tantas possibilidades na vida quantos são os meus interesses, eu sinto falta do que fica de fora - e que não necessariamente deveria - quando escolho algo. Para ser mais exata, fico me perguntando se preciso mesmo abrir mão de algumas coisas porque escolhi determinado estilo de vida. 
Enquanto algumas coisas são dadas pelas circunstâncias (por exemplo, estar longe de um grande centro urbano), outras derivam de um certo tipo de comodismo (achar que a vida a dois restringe viajar, fazer cursos, dar aula). A estas é que devemos prestar atenção, sobretudo no caso de nós, mulheres. Muitas vezes nos acomodamos por força da cultura patriarcal que nos ronda, mas cada vez menos nos amedronta. A personagem de Michelle Yeoh é emblemática: uma mulher tentando dar conta de tudo e que não realiza suas reais possibilidades, e que descobre, à beira do colapso, que pode dizer não, fazer ajustes, mudar, retomar o caminho, retomar seu tamanho.  
Embora pareçam vidas diferentes, como no livro de Haig, todas se encontram num mesmo ponto, o da essencialidade do ser, o que nos faz sermos únicas e únicos, com todas as possibilidades que carregamos em nós. Não nos percamos, seja lá qual for o caminho que decidirmos trilhar. Seguir sendo, esse é o maior poder. 

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Quem fala?

Acabei de ler outro livro de Elena Ferrante, Dias de abandono. Assim como em outras narrativas (os livros da tetralogia napolitana, A filha perdida, Mentiras que os adultos contam), há o contraponto entre a vida pobre em Nápoles e uma nova vida proporcionada pelo conhecimento, além dos desencontros amorosos. Mas aqui, desde a primeira página, há um quê de Simone de Beauvoir em A mulher desiludida - o que se confirma quase ao final, numa menção direta ao livro da filósofa e escritora francesa. 
Ambas, Ferrante e De Beauvoir, constroem uma narrativa do ponto de vista da mulher adulta que se vê diante de mudanças na vida a dois, com a chegada da maturidade e o surgimento de outro interesse amoroso ou outra meta por parte do companheiro. Não é difícil mergulhar nas narrativas de ambos os livros, identificar-se, sentir o mesmo, inclusive a perda do senso de realidade que há em Dias de abandono. O lugar de fala das personagens (nem estou falando das autoras, considerando aqui que Ferrante seja mesmo uma mulher) ajuda a fazer esse mergulho, pois soa bem convincente.
A propósito do assunto lugar de fala, há pouco tempo aconteceu uma suposta polêmica com Chico Buarque sobre sua canção "Com açúcar, com afeto", composta a pedido de Nara Leão, que a interpretava lindamente. Depois li uma entrevista de Chico dizendo que não houve polêmica, que ele desconhecia haver feministas revoltadas contra ele pelo teor machista da canção, que ele não disse que nunca mais cantaria a canção por conta disso. Produziu-se uma celeuma em torno de algo que não houve (é fake news que chama?). Chico disse que não canta mais porque é impossível continuar cantando todas as mais de 400 composições de sua autoria, e que essa música já tão datada não era mais cantada nem por Nara, que provavelmente a abominaria hoje. 
Um amigo meu, professor de literatura, escreveu que Chico quis retratar uma mulher que vive aquele tipo de relacionamento, está ciente dele, mas no final ela é que domina a coisa toda. É um ponto de vista. Concordo que a personagem parece ter consciência do que vive, o que não quer dizer que não sofra. Porém, como afirma Chico na entrevista, não há mais lugar para a mulher que se lamuria, que deixa de conquistar seu espaço por causa de um homem. Chico não tem, é claro, esse lugar de fala, porque é homem, mas, como artista, pode criar qualquer personagem. Como artista, pode ser que conceba personagens pouco convincentes, que erre a mão, não só em questões de gênero, mas de classe social e de raça. Mas, vejam só, Chico sempre foi elogiado por cantar a alma feminina como ninguém. Ainda acho que consegue, e ele se mostra consciente das mudanças femininas e feministas no tempo. A cantora Marília Mendonça, que morreu precoce e tragicamente, aos 28 anos, vinha mostrando o lado feminino do sertanejo, muitas vezes sofrido, nem sempre libertário, mas verdadeiro. Talvez isso seja justamente o que mais cativa, o que mais importa - a verdade iluminadora trazida pela ficção. 

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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