segunda-feira, 23 de junho de 2025

"Planejar para descaralhar"

Ontem, no perfil da Kiusam de Oliveira no Instagram havia um corte do programa Multipolar, do Michel Mamede, com a atriz Shirley Cruz. Eu não a conhecia, e fiquei encantada com o ensinamento deixado por ela, sobre a necessidade de "planejar para descaralhar", ou seja, chutar o balde com classe quando necessário. Ela contava o episódio de ter sido convidada para fazer uma cena em um filme da Anna Muylaert, que ela recusou, dizendo que a cena podia ser feita por qualquer atriz, e ela tinha muita energia a oferecer, um "útero para colocar na mesa". Como não se apaixonar? E a justificativa, segundo ela, é a de, apesar de precisar pagar boletos, ser necessário se impor - até quando ficaria fazendo "cenas"? Maravilhosa! O resultado foram alguns papéis como protagonista em filmes da própria Anna, inclusive o premiado e prestes a estrear A melhor mãe do mundo (prêmios de melhor atriz para Shirley, melhor roteiro e melhor fotografia no Cine PE e de melhor filme em festivais franceses). 
Hoje, em mais uma tentativa de receber por um trabalho feito há quase 3 meses, dei uma leve descaralhada. Já fui de descaralhar mais, mas a precarização dos trabalhos nos faz perder o élan, guardar as armas. No entanto, hoje resolvi que não, que ia dizer umas coisas. Da minha experiência e amor pela educação, do descaso e desorganização deles. Do cumprimento de prazos exíguos retribuído com falta de informações e adiamentos sem explicação. A resposta, muito pró-forma, veio só para ganhar tempo enquanto a editora faz o que quer. 
Em algum momento, provavelmente receberei o devido, mas a questão é fazer com que enxerguem a profissional por trás da troca de mensagens. Talvez não mude nada. Mas, para mim, é um primeiro passo antes de simplesmente dizer não, recusar o trabalho precário. Ainda chego a Shirley, mesmo depois dos 50. 
Nem sempre precisamos ser educadas não. Mas planejar é sempre bom, mesmo para chutar o balde.  
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sexta-feira, 20 de junho de 2025

Questões de classe(s)

Há alguns dias, fui assistir ao novo filme de Juliette Binoche, Entre dois mundos, do diretor francês Emmanuel Carrère. De cara, me lembrei de Dias perfeitos de Wim Wenders, por Carrère mostrar a rotina de trabalhadoras na limpeza de banheiros e cabines de navio. Claro, são duas propostas muito diferentes, o longa de Wim Wenders se assemelha a um haikai, tamanha sua capacidade de captar a poesia do cotidiano. O filme de Carrère pouco tem de poético, leva-nos num moto-contínuo de trabalho exaustivo junto com as mulheres contratadas por agências para limpar a sujeira alheia enquanto lidam com seus próprios dramas, a maioria deles produzido pela falta de recursos materiais e emocionais. Embora a gente torça para um real envolvimento da personagem de Binoche com suas colegas, a realidade fala mais alto, e ela não sobe novamente na balsa com elas depois de ter conseguido lançar seu livro, um sucesso, aliás, justamente a respeito daquelas trabalhadoras. A classe continua a determinar as distâncias, apesar do interesse "antropológico" da protagonista. 
Como se trata de um filme sobre as classes operárias, poderíamos lembrar também de Ken Loach, quase um E. P. Thompson das telas, outro britânico que traz os desvalidos para o centro da cena, nunca de forma redentora, mas dolorosamente solidária e sem atravessadores de ocasião. Mas, mesmo com a dureza da vida proletária traduzida pelos seus não atores, Loach mostra, como Carrère, que existem mesmo dois mundos separados, não mais proletários e patrões, mas explorados e exploradores. E ainda há quem queira reduzir tudo a questões de "identitarismo", quando o que temos é uma minoria interessada na manutenção da miséria para não abrir mão de seus privilégios. 
Que a arte, seja a de Carrère ou a de Loach, nunca nos deixe esquecer do que se trata.  

https://rollingstone.com.br/media/_versions/2025/05/binoche-conduz-reflexao-sobre-etica-e-invisibilidade-no-drama-entre-dois-mundos_widelg.jpg

Vento de maio, fogueiras de junho, fim do semestre

Semestre chegou ao fim. Tudo passando cada vez mais rápido. Mais conflitos no Oriente Médio, além do genocídio palestino. Maio trouxe muitas chuvas ao Brasil, especialmente no Sul, de novo. Pouco trabalho, mas pingando aqui e ali. Preocupações familiares. O desânimo é grande. Nunca foi tão necessário presentificar. Não ceder nem à ansiedade nem à depressão. Nunca foram tão necessárias a beleza e a solidariedade. Junho veio lembrar da necessidade de se aquecer, a si e coletivamente. Escolher sementes para o futuro próximo, ter consciência do caos para saber lidar. Manter-se no fluxo, não esquecer de respirar. 

domingo, 25 de maio de 2025

Não se entregue nunca

Desde que vi o anúncio do monólogo de Othon Bastos quis assisti-lo, ainda sem saber se viria para Salvador. Veio, e consegui ingresso para o ensaio aberto (não gratuito, mas 1/5 do valor do ingresso do Teatro do SESC - não há, penso, SESC como o de São Paulo, com valores tão acessíveis, e Salvador, com poucas casas de espetáculo, tem cobrado muito caro do público). 
Mesmo de um lugar muito distante do palco, na penúltima fileira do foyer, com joelhos encostando na cadeira da frente, valeu a pena ver esse ícone do cinema, da TV e do teatro aos 92 anos desfiando, por 2 horas, episódios de sua vida com a ajuda da Memória, interpretada por Juliana Medella, sabiamente escalada para dividir o palco mas também compartilhar deixas com o veterano. 
Houve momentos em que tive medo de que ele caísse ou se cansasse ou se esquecesse, de fato, mas ele foi aguerrido até o fim. Com sua voz potente, emocionou a todos, falando de suas primeiras experiências no teatro, como figurante mudo, de como o acaso o levou a grandes papéis, como Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol, e como algumas vezes foi um "coadjuvante de luxo", caso de sua participação em Central do Brasil. Homenageou amigos, declamou trechos de peças, agradeceu à sua Bahia natal. Foi ovacionado por muitos minutos, merecidamente, plantando na gente a semente da não desistência, a sorrir em cada novo dia. Não tem sido fácil, Othon, mas sorrimos com o seu exemplo e seguimos. 

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Antônio e José

Sempre que eu via Pepe Mujica, me lembrava de meu avô, embora seu Antônio fosse um tipo mais bonachão e Pepe, um observador filosófico da vida e do mundo.
Ontem, Pepe partiu, após uma longa luta contra o câncer. Faria aniversário por esses dias, 90 anos. Não pôde esperar. Avisou a todo mundo que em breve partiria, e assim foi, sem dramas, apesar da nossa tristeza. Honras de estadista, mas principalmente de homem do povo. Já faz falta. 
Hoje juntei os dois, meu avôhai e Pepe, Antônio e José. Se se conhecessem, ah, como seria incrível esse encontro! Dois gigantes que não perderam tempo se lamentando, cada um a sua maneira. Gente que faz falta.

domingo, 4 de maio de 2025

Olha a veia que salta, olha a gota que falta

Fui assistir no feriado do trabalhador à montagem de Gota d'água da Companhia Baiana de Teatro Brasileiro, no Teatro Martim Gonçalves. Outro dia, houve a Medeia negra no campus de Ondina da UFBA, mas não consegui me programar para assistir. O fato é que, para sorte dos que amam o teatro, a heroína trágica de Eurípides não perde nunca sua importância. 
Embora já tivesse assistido a Medeia, com Juliana Galdino em 2005, no SESC Belenzinho, e no filme de Pasolini, com Maria Callas, eu ainda não tinha visto, mesmo conhecendo o texto de Paulo Pontes e Chico Buarque, nenhuma montagem de Gota d'água. A atuação de Evana Jeyssen é visceral, como se espera de Joana-Medeia, mas é quase desesperada, no limite, sem perder, contudo, o controle corporal impressionante, como bem pontuou Liu. Evana e Augusto Nascimento dividem o palco, alternando os papéis de Joana e Jasão com o Coro de vizinhos e Creonte, num cenário enxuto, um círculo de areia, que é praia, rua, casa, tempo que escorre dos baldes-ampulhetas espalhados pelo urdimento, mas principalmente arena (feliz escolha etimológica) onde se dão os confrontos desamorosos. 
Fiquei tão mexida que fui rever Callas no filme de Pasolini e acabei encontrando uma versão japonesa, do diretor Yukio Ninagawa, encenada no Epidauro, imagine, na pura tradição do kabuki, portanto apenas com atores do sexo masculino. 
A trama da mulher que sofre por ser abandonada em um país estrangeiro depois de ter dado tudo ao amante tem muitas camadas, como dizemos hoje: ela é estrangeira duas vezes - depois de deixar Cólquida, a terra natal, para ficar com Jasão em Iolco e, então, quando fogem para Corinto depois de serem perseguidos pelos súditos de Pélias, rei de Iolco e tio de Jasão. Medeia é hostilizada por ser forasteira e por suas práticas de magia, que teriam ajudado Jasão a conseguir o Velocino de Ouro e a matar Pélias, que disputava com o sobrinho o trono de Iolco. Jasão, embora ele também estrangeiro, arranja casamento com a filha do rei de Corinto, Creonte, e abandona Medeia com seus dois filhos. Creonte exige que ela vá embora, ou seja, que siga sem lugar no mundo, desterrada. O final, nós conhecemos, e sempre há o desconforto, justificado, diante da decisão de Medeia, que tira de Jasão a única coisa que ela lhe dera que ainda o interessava - os filhos, a dinastia.
É um fato raro que mães matem os filhos - embora aqui e ali haja uma notícia assim, nada que se compare à quantidade assustadora de homens que matam ex-mulher e filhos -, e Medeia não trata apenas disso, embora seja o que nos choque à primeira vista. Para muitos, talvez essa trama ainda seja apenas uma reação extrema da mulher traída. Hoje, mais que nunca, o que vejo nela é a opressão feminina em pleno "século do ouro" ateniense. Impossível ouvir Chico Buarque, já que o mencionei, cantando "Mulheres de Atenas" e não ter um ranço dos atenienses machistas, que dominavam as mulheres como também os estrangeiros e os escravos, nenhum deles visto como "cidadão". Impossível assistir a Medeia e não pensar em como, até hoje, mulheres, por mais poderosas que sejam, dependem de que os poderosos de fato ditem os rumos de sua vida, limitando o exercício de sua cidadania. Na verdade, uma gota da raiva de Medeia/Joana, sem sequer derivar para a violência, é o suficiente, vem a calhar para mudar a realidade das mulheres. A gota que falta.

https://aefestival.gr/wp-content/uploads/2018/05/medeaea.jpg 

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https://www.satisfeitayolanda.com.br/blog/wp-content/uploads/2012/03/medeia.antunes.jpg

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Pastel de choclo

Como a banana-da-terra, milho também é uma maravilha. Mesmo não sendo o alimento mais digerível do planeta, é uma delícia. E tem essa identidade indígena indiscutível, dividindo o posto de alimento da terra com a mandioca/aipim/macaxeira. 
Nos países andinos, o milho impera. Eu, que já fui confundida com uma chilena, resolvi fazer esta semana o pastel de choclo, para variar o cardápio. Carne moída bem temperada, enriquecida com ovos cozidos e coberta com um purê de milho. Perfeição. Já que não vou ao Chile tão cedo, que venha ele a mim.

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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