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sexta-feira, 13 de outubro de 2023

"Girl" ou o quanto desconhecemos a dor do outro

Poucas vezes vi um filme tão contidamente doloroso como Girl, do jovem diretor belga Lukas Dhont.  Apesar das críticas ao fato de o ator protagonista não ser uma menina trans, mas um garoto cisgênero, a performance desse jovem, Victor Polster, é irretocável, no sentido de nos levar junto na sua travessia de luta por ser quem é, sofrendo silenciosamente violências grandes e pequenas numa sociedade aparentemente progressista como a belga. Polster é bailarino, então suas cenas de dança são vertiginosas na busca da perfeição e de um lugar naquele mundo. Tem um quê de Cisne negro nessa vertigem do movimento e também na busca pela transformação - no caso de Girl, a transformação da protagonista em si mesma, naquilo que nasceu para ser, uma mulher, e uma mulher que dança.
Neste momento preciso, no Brasil, a comunidade LGBTQIA+ sofreu um baque na garantia de seus direitos. Justamente os direitos de existirem, de constituírem família, de simplesmente serem. Apesar da vitória de Lula, sabíamos que a luta não findaria, e a ultradireita continua seus ataques obscenos contra os direitos humanos. Apesar da insipiência argumentativa, eles detêm o capital financeiro que direciona as leis. E o mundo parece cada vez mais do avesso quando vemos parte da humanidade zelosa em promover a infelicidade alheia. 
Isso tudo, os ataques reais e os ataques que a personagem de Girl sofre (mesmo com todo o apoio familiar, as jovens bailarinas exigindo que ela mostre seu membro, e toda a pressão para que não se misture às outras meninas, chegando ao fim trágico da mutilação), me fazem lembrar da fala de Rubem Alves no documentário Eu maior, sobre a tragédia grega e a compreensão de Nietzsche acerca dela, de que os gregos não se entregavam à inevitável tragédia da vida porque cultivavam a beleza. Hoje está mais difícil pensar na beleza em meio ao horror cotidiano, até porque a arte e a natureza, portadoras dessa beleza, também têm sido violentadas. 
Talvez por isso tudo a dor silenciosa em Girl soe como a mais perfeita tradução para esse sofrimento que muitas e muitos de nós não conhecemos, mas que justamente por isso não devemos ignorar. Nisso é que residem a empatia e a verdadeira compaixão, e são elas que nos fazem verdadeiramente humanos.
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terça-feira, 20 de março de 2018

Like a girrrrrrrl

Eu ia fazer um post sobre o dia da mulher. Mas a oportunidade da data passou. E aconteceu tanta coisa terrível e/ou louca nos últimos dias que o tom se tornou mais sombrio, embora não menos aguerrido.

Marielle
Poucos dias depois do dia da mulher, Marielle Franco, vereadora carioca defensora dos direitos humanos, sobretudo de negros, mulheres e público LGBT, foi exterminada no interior de um carro quando voltava de um evento público.
Tão terrível quanto a sensação de perda de uma semelhante - perda para o machismo, para a violência, para o sistema político opressor - e do retrocesso de direitos tão duramente conquistados, foi ver a reação de pessoas conhecidas. No grupo de WhatsApp do colégio, os homens retrucavam que a morte dela era uma arma da esquerda, que estava "politizando" o fato quando morrem tantas pessoas, tão importantes quanto ela, todos os dias. O esvaziamento da morte, do sentido dessa morte, só esfrega na nossa cara o fundo do poço a que chegamos.
Marielle era pobre, negra, mãe solteira e bissexual. Mesmo assim, com todos esses poréns, com esses estigmas, estava entre os cinco vereadores mais votados do Rio de Janeiro na última eleição. Moradora da Maré, foi a primeira representante de uma comunidade na Câmara. Estudou Sociologia na PUC com bolsa integral e fez pós-graduação em Administração Pública na UFF. Era defensora dos direitos humanos, não só de "bandidos", como se está dizendo por aí, mas de todas as pessoas violentadas em seus direitos, como um policial morto cuja família recorreu a ela, porque ninguém mais lhe prestou ajuda. A morte de Marielle representa o silenciamento de muitos que puderam, graças a ela, ter uma voz. Que esses muitos e muitos de nós não se deixem derrotar, e façam dessa falta, dessa fome um motivo para lutar.

Vídeo sobre desigualdade salarial entre gêneros
No mesmo famigerado grupo de WhatsApp do colégio, minha sorella Karen postou um vídeo fofo que anda circulando nas redes, que mostra a necessidade de condições salariais iguais para homens e mulheres. Duplas formadas por um menino e uma menina realizam uma tarefa. Ao final, cada dupla recebe sua recompensa, um pote de doces para cada um. O pote das meninas contém bem menos doces que o dos parceiros. O instrutor pergunta a cada dupla se sabe por que as meninas receberam menos, e revela que é porque elas são meninas. Os garotos mostram surpresa e as meninas, indignação. A conclusão da existência da desigualdade de gêneros fez o grupo do colégio, tão falante e opinioso no caso de Marielle (que estavam chamando de Mirella), se calar. Cricricri. Medo da polêmica? Medo de discordar do óbvio? Medo de "parecer" machista?
Só sei que achei o silêncio masculino um estrondo, mas o silêncio feminino foi um escândalo.

Jacqueline
Ainda por esses dias, peguei já iniciado um documentário no Canal Brasil, "Meu nome é Jacque", sobre a ativista de direitos LGBT Jacqueline Rocha Côrtes, transexual e soropositiva. Despretensioso, parece ser a história de uma dona de casa comum. Aos poucos você descobre uma mulher num corpo de homem, lutando para se libertar, graças a Deus com o apoio incondicional da família, especialmente da mãe. Uma mulher que consegue ser quem é e que passa a ajudar milhares de pessoas em suas lutas (sim, no plural, porque são muitas lutas) pela individuação. Jacque chega a ser uma liderança na ONU, mas prefere ir viver com o marido em Araruama. Ao fim do documentário, descobrimos que ela consegue realizar o sonho de ser mãe, adotando dois irmãos. Tão merecedora de tudo que conquistou, Jacque alegrou meu coração numa semana de contrasensos e evidências tristes. 


Tudo isso é sobre mulheres. Sobre lutas diárias contra o machismo, contra a desigualdade, a violência. O embate se torna maior porque muitas de nós têm despertado para essa tradição inventada da mulher-menos, da mulher-contra-mulher. Há muito mais sufragistas de causas diversas hoje, com esse despertar feminino. Sim, estamos aprendendo a lutar como garotas, e quanta força há nisso!
No dia da mulher propriamente dito, vi muitas mensagens prontas de gente que condenou Marielle, que não entendeu a história dos potes desiguais de doces, que cuspiria em Jacque se a encontrasse na rua. Muito julgamento, pouco entendimento. Muita hipocrisia, nenhuma empatia. Deve ser por isso que há tanto movimento nos céus, com satélites e meteoros despencando. 
Mas nós seguimos avançando sob a noite escura.

Créditos: As três fotos foram retiradas da internet, sem identificação de autoria.

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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