Sem subversões da inscrição do templo de Delfos: digamos que é um "complemento". Para conhecer-se a si mesmo, há que se amar, há que se elogiar também, ou o autoconhecimento pode aprisionar em autocrítica desmesurada.
Acabo de ver um vídeo lindo, compartilhado pela Simone Adami no FB. Chamaram-no "Validação", porque mostra um sujeito que valida cartões em um estacionamento e graciosamente distribui elogios a desconhecidos. Ele vira um fenômeno, por conseguir espalhar a felicidade com seus elogios. Mas não consegue arrancar um sorriso de uma moça por quem se apaixona (...), e acaba ficando infeliz.
Por sorte (dele e nossa), isso não dura muito tempo, e ele logo reencontra sua vocação, agora na fotografia. Consegue tirar dos fotografados um sorriso genuíno, do fundo da alma, com seus elogios. Bem, não vou contar o resto, pois o vídeo vale 15 minutos de pausa num dia estressante (no meu caso, salvou o dia, iniciado às 6h com dois helicópteros sobrevoando o prédio por uns 40 minutos, seguidos do barulho habitualmente infernal da obra nos fundos - ai, Nossa Senhora da Achiropita do Perpétuo Socorro aos Locatários, rogai por mim, hoje e sempre, amém!).
Chorei com o vídeo, lógico. A esperança, a solidariedade e os elogios via de regra me fazem chorar. Mas veio desse vídeo outra lição (quantas! às vezes acho que não darei conta!), a de como ansiamos por ser "validados" pelos outros. Queremos que alguém nos diga que somos válidos, que temos valor. Claro que um elogio é capaz de fortalecer, dar confiança, fazer seguir em frente. A falta de reconhecimento tolhe, cerceia talentos e afetos. O rapaz busca o sorriso da moça, que não vem, e ele se quebra. Mas algo dentro dele - um autorreconhecimento, um autoelogio, mesmo que inconsciente - ressurge e o faz prosseguir. Só pode estar dentro dele. Ele se surpreende quando ouve o primeiro elogio da sua vida - mas eu desconfio de que seja só um eco da sua própria voz interior. Só se fez ouvir porque ele não deu ouvidos a outras vozes lamuriosas, derrotistas.
Ah, quanto a aprender!
Já comentei lá no Ser o que soa que ando dando ouvidos a uma vozinha imperiosa que não me deixa enquanto não paro 5 minutos para fazer um haikai ou um desenho. Estou nessa agora.
Hoje foi a vez da Fênix. Estava com coceira de cor, muito laranja, vermelho, fogo, flamejar. Desde uns dias, para falar a verdade. E hoje tive que parar e desenhar, lá do meu jeito, sem grandes pretensões, mas satisfeita com o resultado - era isso que estava dentro de mim, como a menina na corda bamba, como a menina de mãos abertas diante de um marzão de possibilidades. Tinha que ser também com o giz pastel oleoso que trouxe de Paris e mal usei.
E tenho curtido essa história do caderno fotografado sobre o teclado; acabou constituindo uma série de desenhos que mostram bem o contexto do siricotico em pleno horário de trabalho. Mas a ideia é que não sejam desenhos demorados, elaborados, em busca de uma técnica que nem tenho. Só pura inspiração, registro, expressão imediata. Pronto.
Voltei à cozinha. Devagar. Num dia, cozinhei pra um amigo - não foi o meu melhor risoto, mas ficou bonzinho (nozes e queijo de cabra; a musse de chocolate com morangos frescos compensou). No outro, pasta com shimeji pra mim. Bom. Voltando.
Outro dia, cansada dos restaurantes do entorno, resolvi fazer algo rápido com o que tinha comprado no hortifrúti. Uma bandeja de legumes (brócolis, couve-flor, cenoura, abobrinha, mandioquinha, alho poró) para sopa, justamente, se misturou a uma lata de tomate em cubos, um tiquinho de vinho do Porto, sal, pimenta, canela e salsinha. Simples assim. E ficou bem bom!
Por caminhos que a gente nem entende à primeira vista, acaba optando por coisas de mesma natureza, que têm a ver com nossa vida, nosso jeito, naquele momento.
Eu ando numa fase "funcional". Senti necessidade de trocar meu treino de musculação comum (que não curto mesmo, só faço porque é necessário, e olhe lá) por um funcional. Alguma semelhança com pilates, mas mais incorporado ao dia a dia, melhorando a performance corporal em atividades comuns (essa é, pelo menos, a promessa geral). Achei mais interessante usar elásticos, faixas, bola, o peso do corpo do que os chatíssimos e disputados aparelhos, até porque boa parte desse treino pode ser feito fora da academia, com as adaptações necessárias.
Aí uma amiga me mandou a programação de um curso que achei muito bacana: culinária funcional harmonizada com chás. Me identifiquei na hora, até porque já faz um tempo me interesso pelas funções de alguns alimentos na melhora da saúde.
Tudo isso me fez pensar que agora quero uma vida mais funcional. Nem sei se o termo se aplica, mas penso que querer viver com menos estresse, menos consumo e até menos comodidade (hoje pra mim quase sinônimo de comodismo), mais perto de uma área verde justifica a apropriação. E aí a tal voz interior que anda dando palpite em tudo até cantarolou pra mim o que me parece ser a música-tema de uma vida funcional: "Só quero saber do que pode dar certo/Não tenho tempo a perder". Poderia ser "Tocando em frente", do Renato Teixeira? Também! Um compacto duplo, por que não? Uma energia diferente para cada momento, porque não somos os mesmos o tempo todo (sorry, Belchior).
Naquela inútil febre de Black Friday, em meio a gente pra lá e pra cá no shopping, resolvi de repente entrar numa loja - não, eu não estava acometida pela febre consumista, nem tampouco a tal loja estava realizando descontos de Black Friday. Nem sei por que tive o impulso de entrar, quase no momento de ir embora.
Talvez na hora tenha me lembrado de que queria há tempos comprar um vaso para colocar flores - talvez tenha querido comprar flores naquela semana, mas me lembrei de que não tinha o tal vaso. Acho que foi isso. Bem, de repente me vi diante de alguns lindos vasos de cristal da Bohemia. Coisa de 180 a 250 reais cada um. Pensei logo: não vai rolar. Aí me deparei com um único sem preço (o da foto) - elegante, longo sem ser magrela, com uma linda base art déco.
Pedi ao vendedor, sem mais, que conferisse o preço para mim. Enquanto isso, encontrei um único vaso de vidro ao lado. Interessante, de linhas retas, bem mais grosseiro, mas OK. Oitenta reais. Não era barato, mas era mais acessível. Pensei: bom, acho que vai ser um de vidro mesmo.
Já estava com o vasão de vidro na mão quando uma outra vendedora voltou com o de cristal. "Olha, acho que o preço está errado..." Perguntei quanto era. Oitenta reais. Esperei um pouco para ver se a moça ia querer se certificar, provar até o fim que o produto valia mais (como se fosse preciso!). Uma vez que não houve grande resistência (só algum desconcerto), tomei o vaso das suas mãos: "Vou levar este".
Em casa, fiquei admirando as linhas finíssimas do cristal boêmio. Delicado, lindo. Comprei flores, por fim, e fiquei feliz. E percebi aí um ensinamento valioso em pleno dia global de consumismo febril: podemos até nos contentar com vidro, mas a vida às vezes nos oferece cristal.
Neste momento (e provavelmente doravante), o cristal me cai muito bem.
Outro dia, acordei angustiada - precisava cortar os cabelos. Urgentemente. Disso dependia o final de um ciclo. Sentia que precisava mostrar o rosto, dar a cara pra bater, romper com um modelo no qual não me reconheço mais. Liguei na mesma hora para o salão, reservei o horário e dei o aval ao meu cabeleireiro há mais de 15 anos: muda tudo, manda bala. Depois de um breve choque (não estarão muito curtos?), o reconhecimento de mim mesma, o alívio. Voltei.
Tenho aprendido a respeitar as premências. Mudar de casa, colocar ponto-final numa situação, verbalizar, poder dizer "acabou" com todas as letras, em voz alta. Esse modo de vida, esse comportamento, o que se tornou uma relação, esse lugar. Perceber que, como num texto, só se conduz a narrativa deixando algo atrás de si com clareza, mudando de parágrafo, e para isso é preciso sinalizar a passagem com um ponto-final, sem dúvidas quanto ao que deve ser feito, ainda que restem todas as dúvidas quanto ao que será.
Gil canta pra mim (e como pensar que ele, logo ele, poderia estar errado?): "Alguma dor? Talvez sim/Que a luz nasce na escuridão". Puxa, cada vez mais tenho crido nisso, nessa aurora que vem vindo, implacável e linda. E para recebê-la também tenho que estar a contento: linda e renovada, de cabelos à la Era do Jazz e batom cereja.