sábado, 17 de fevereiro de 2024

Vamos pra avenida, carnavalizar

A única coisa que eu sabia que queria fazer no Carnaval era ir à Mudança do Garcia, nos arredores do Campo Grande, uma festa de blocos mais politizados em Salvador. Já tinha combinado com Liu e Igor. Nesse meio tempo, porém, concretizou-se a possibilidade de sair no Cortejo Afro com Cris, e Alberto também confirmou que faria seu camarote no Recôncavo Culinária. 
Não consegui sair no Cortejo no primeiro dia, no Campo Grande, porque não havia Uber que chegasse até aqui. Foram sete desmarcações até eu decidir que só iria às saídas na Barra. 
No sábado, eu planejava ver Chico César e Margareth Menezes homenageando Gil, na Barra. Fui caminhando pela avenida já tomada de gente até o restaurante de Alberto, que logo me apresentou a esposa, Andrea, e os amigos. Ali ficamos batendo papo, bebendo, comendo até a hora em que aparecia algum trio que nos interessava e íamos ver. Logo perdemos a esperança de ver Chico César e Margareth, porque houve uma confusão enorme com os carros, alguns quebrados e vários virados na contramão e com dificuldade de manobrar. Ainda teve apagão - no trecho onde estávamos a energia foi restabelecida rápido, mas em outros lugares demorou bem mais a voltar. A passagem do Trio da Cultura, como foi chamado o de Chico, Margareth e Gil, estava prevista para as 20h (parece que só passou depois da meia-noite), mas às 22h30 resolvemos ir atrás de Carlinhos Brown, animadíssimo, cantando hits de todas as épocas, com a única desvantagem de que Brown fala mais que todos, então as paradas diante dos camarotes eram intermináveis. Resolvi sair do mar de gente quando nos aproximamos do Morro do Gato; Andrea deu um jeito de alguns de seus amigos me acompanharem na saída. Nunca me senti tão protegida numa muvuca! 
No domingo, como tinha feito no sábado, aproveitei para trabalhar um pouco, porque a saída do Cortejo na Barra era apenas à noite. Cris e Júlio vieram à tarde, deixaram mochila aqui e foram ver Olodum. Saímos por volta das 20h até o Farol da Barra para sair com o Cortejo. E foi maravilhoso! Como estávamos dentro das cordas, participando do bloco, foi tudo muito tranquilo - e domingo já não havia aquela confusão louca do sábado. A energia do Cortejo Afro é demais, e até rolou foto com globais, o onipresente Humberto Carrão e o maravilhoso Evaldo Macarrão, da novela Renascer. Mas também saímos antes, que Cris e Júlio já estavam cansados e doloridos. 
Acordei cedo para ir ao Garcia, aproveitando que era o horário de abertura das barreiras. O motorista me deixou perto do TCA, e andei um trechinho até o prédio da mãe de Liu. Dali seguimos para o Garcia, um bairro simpático e familiar nas imediações do Campo Grande. Logo me arrependi de não ter levado chapéu, porque o sol, que parecia improvável, apareceu com todo seu fulgor. Os trios demoraram muito a sair, a rua ficou muito pequena para tanta gente, misericórdia. Das três experiências, foi com certeza a mais intensa. Para além de se estar no meio de pessoas que pensam como eu em muitos aspectos (e havia muitos sorrisos, e gentilezas, mesmo no caos, como a senhora que nos deixou usar o banheiro de sua casa e ainda convidou para almoçar), e isso foi o que deu gás para seguir até o final, o trajeto foi o mais cansativo, mais acalorado e quase claustrofóbico em alguns momentos. Juntou-se a isso ter de passar pelo Campo Grande, tanto no final do trajeto, quando já fomos esmagados, quanto quando resolvi ir embora, já no final da tarde, depois de ter esperado a passagem de dois trios mais barra-pesada, e aí realmente a coisa ficou crítica, com empurra-empurra e tivemos de dar a volta na praça toda para sair dali. Já sabia que voltaria para casa andando, mas esse trajeto intermediário foi mais caótico do que eu poderia imaginar. Conseguimos por fim chegar à ladeira do Canela e resolvi vir andando dali até em casa. Cheguei já à noite (e soube depois que meu vizinho foi assaltado na nossa rua, à tarde! tudo bem que ele vacilou, caminhando distraidamente de celular na mão). 
Se eu ficasse pensando muito, talvez nem saísse para o Carnaval. Só fui. De uma forma mais contida, porque conheço o meu humor (menos tolerante hoje, com a perimenopausa), mas topando a imprevisibilidade carnavalesca mesmo quando tentamos fazer algum plano. Os horários loucos, os atrasos absurdos, as mudanças na ordem das apresentações - coisas que normalmente me incomodam, mas ali, no reino de Dionísio, eram parte desse banquete luxurioso e escaldante. Nem me incomodei com os suores alheios, embora ainda me incomode um pouco gente que não conheço me pegando pelo ombro. O mais difícil, de fato, foi o calor - mas pra isso já adquiri meu repositor de eletrólitos, rá (não o da Baby, que disse loucuras sobre apocalipse, peloamor)! 
Como disse no post anterior, o que faz a diferença são as companhias. É possível imaginar uma festa vazia? Não faz muito sentido, e por isso, mesmo que eu não tivesse as melhores companhias nesses dias, provavelmente arranjaria outras no caminho, ainda que só para carnavalizar. Vamos (ou deveríamos ir) para a avenida levando sonhos, e querendo ver os sonhos de todos, vamos para cantar juntos, para ver o que pode haver de belo na vida, para repor a energia e suportar a vida cotidiana, para praticar a democracia, para subverter a ordem das coisas, de uma sociedade tão desigual. Se, como diz o velho Gullar, a arte existe porque a vida não basta, o Carnaval existe para nos lembrar que há vidas ao redor, todas com o mesmo direito à alegria. 

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Antes bem acompanhada do que só

Tem um diálogo atribuído a Hemingway, mas que nunca encontrei em nenhum escrito seu, menos ainda em Por quem os sinos dobram, obra na qual figuraria o trecho mencionado: "- Quem estará nas trincheiras ao teu lado? - E isso importa? - Mais do que a própria guerra." Para além do fato de que isso não tem muita cara de Hemingway, a ideia em si é válida: a companhia faz toda diferença.
Curtir a própria companhia é fundamental, sem momentos de solitude não nos conhecemos de fato. Mas como é bom ter bons amigos ao redor! Como é bom rir junto, lembrar de coisas, algumas nem tão antigas, construir memórias, ter testemunhas da vida, da nossa existência. Creio que, sim, vivemos independentemente disso, porque respiramos, caminhamos, comemos, dormimos - biologicamente falando. No entanto, existirmos para alguém nos dá uma sobrevida - filosoficamente falando. E o que é a memória senão isso mesmo? 
Quando encontro Vivi e falamos de nossos tempos de Bienal, mas também do viver hoje e dos planos futuros, isso é puro reencantamento da memória. Percorrer o caminho da Lavagem do Bonfim com Liu, Igor e Suli é criar momentos inesquecíveis e solidariamente tecidos com o mar de gente, o sol dentro de cada um e a cantoria em toda parte. E rever Bot e sua linda família é testemunhar o encontro de passado e futuro no presente ensolarado das ladeiras do Pelô, em que falta tempo para tanta conversa, mas o prazer de estar junto é uma promessa de reencontro próximo. Essas pessoas todas fazem a diferença na caminhada, tornam-na mais agradável, emprestam-lhe sentidos. Enquanto vivermos, todos viverão.

domingo, 7 de janeiro de 2024

Turistando em Salvador

Recebi a primeira visita paulistana em Salvador - Marise. Ela veio para passar o ano-novo, e fizemos render a estadia dela aqui. Depois do pôr do sol no Farol da Barra, aceitamos um convite para festa de réveillon com amigos recentes para já iniciar o ano com o pé direito.
Fomos ao desejado restaurante de dona Susana, na Gamboa, o Re-restaurante, que apareceu até em série da Netflix. A fofíssima dona Susana oferece uma comida maravilhosa: a moqueca de 70 reais serve facilmente até 3 pessoas, com o bônus da vista incrível para o mar. 
Palmilhamos o Pelô numa tarde, revisitei a Fundação Casa de Jorge Amado, onde Marise me rejuvenesceu uns 20 anos numa foto. Tudo muito lotado nesta época, mas tomamos um sorvete na Cubana antes de pegar o elevador para a Cidade Baixa. Achei que o Mercado Modelo deu uma encolhida em termos de mercadorias após a reforma, tudo muito massificado e caro. Lembrei Marise que os produtos de beber e comer poderiam ser encontrados mais em conta no Ceasinha, mesmo não sendo o lugar mais barato para comprar em Salvador. A Casa da Música ficou para uma próxima, porque já tinha fechado.
Fizemos também o périplo Rio Vermelho, com Ceasinha, Casa do Rio Vermelho, onde eu moraria tranquilamente, e acarajé da Dinha, onde encontramos Márcio e o garçom queria nos convencer de que tínhamos tomado seis cervejas em vez de quatro - um lugar a não voltar mais.
Por fim, fomos com George ao Bonfim, que já se prepara para a Lavagem na próxima semana, demos um rolê na Ribeira e na fila do Sorvete da Ribeira, um fenômeno de público, para terminar a andança em Santo Antonio Além do Carmo, esse chuchu de bairro. 
Bom demais estar com as pessoas queridas, colocar a conversa em dia, com esse sol que brilha em toda parte. Salve Salvador!

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Transpondo o limiar

As mudanças não me assustam, mas desde que vim para Salvador sabia que não ganharia a cidade de uma hora para outra. Muitos amigos em São Paulo perguntaram se eu não pensava em voltar para lá. Mas eu respondi que era uma oportunidade única de conhecer esse mundo imenso que é Salvador. 
Como iniciar esse mergulho? Até para flanar, é preciso ter um mínimo de conhecimento local, ainda mais com a violência crescente em toda parte. Mais difícil ainda, eu sabia, seria fazer novos contatos. Todo lugar tem seus recônditos, sua organização própria, suas bolhas. Salvador não seria diferente, e como furar bolhas com meia dúzia de amigos na cidade? 
Tenho cá para mim que um caminho é dizer sim aos eventuais convites e manter ativas as redes de comunicação. E vencer a preguiça, sempre! Amizade e preguiça não combinam, a menos que seja para curtir uma preguicinha boa junto com os amigos. 
Por isso outro dia venci a minha preguiça-quase-prostração e fui ver Cristovam Buarque aqui pertinho de casa. No final, por ter sido um encontro divulgado em cima da hora, só éramos seis pessoas, contando com Cristovam e esposa, e sete com o dono do local. Se por um lado é de lamentar que outras pessoas não tenham tido a oportunidade de ouvi-lo, por outro, que sorte a dos poucos que lá estavam! Fiquei frente a frente com esse homem que ama a educação, que foi ministro, governador, senador, contemporâneo de Brizola e Darcy. Que fala firme e mansamente, que ouve e valoriza o interlocutor. Foi uma noite inesperadamente mágica, um presente da vida. Ainda por cima, me lembrei de meu avô ao contemplar aquele nordestino de sotaque marcado e olhar acolhedor. 
Também aceitei convite de Cris para ver a saída dos blocos afro no centro de Salvador, uma lindeza. Como eu tenho percebido, a Salvador real, negra, parte da Bahia real, estava ali nas ruas, cantando e dançando todas as músicas que conhecem tão bem. Além do cenário privilegiado da praça Castro Alves, com o pôr do sol mais lindo, houve o encontro dos trios, sendo o mais emocionante o que aconteceu entre os Filhos de Gandhi e o Cortejo Afro. No final, vieram Olodum e Ilê Aiyê para balançar a multidão e fechar a noite, que só finalizamos no Rio Vermelho, com o saudoso acarajé da Dinha.
Voltei à Concha Acústica para ver Ney Matogrosso, essa entidade maravilhosa que continua em plena forma e performance. Na companhia de Jô e sob um luar de pura prata, cantei a plenos pulmões junto com as milhares de pessoas que foram prestigiar o mais felino dos nossos artistas. 
Não tenho fotos documentais, mas com Cris e Júlio fui também ver Gerônimo no Pelô. Quer dizer, mal vimos, porque o lugar estava tão lotado que só dava para vislumbrar a peninha vermelha do chapéu que ele usava. Mas que potência! De Oxum ao Caribe, ele botou todo mundo para cantar e dançar, acompanhado de uma banda maravilhosa. Isso quer dizer que o Carnaval já vem vindo. E eu vou indo ao encontro dele e de tudo que essa cidade tem para oferecer.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Corrida e cuscuz, tudo a ver, tudo de bom

Uma das coisas que descobri nos últimos anos foi que eu posso correr. Ainda não do jeito que gostaria, que o cardiorrespiratório de pessoas alérgicas tem suas peculiaridades, mas de um jeito em que me acomodo bem. Além do mais, corrida é esse esporte tão democrático, que basta calçar o tênis e sair - claro que tomando todo cuidado para não se machucar, porque o impacto sobre as articulações é muito maior do que numa pedalada (que, por sua vez, acaba se tornando um esporte caro com toda manutenção necessária à bike e exige mais planejamento para a prática - separar roupa, calçado, água, capacete, câmara reserva, verificar pneu etc.). Então, hoje, a corrida me serve melhor, inclusive com fins econômicos. 
Mas, como sempre, estou começando. Ainda tendo de me educar para respirar melhor. Tendo de ter paciência para aguardar o GPS aparecer no relógio e a programar um treino de fato. De todo jeito, vou. E por seguir a Secretaria de Desenvolvimento Regional, por conta da agroecologia, comecei a seguir também a CAR Bahia, e vi que haveria uma corrida de rua ligada à Feira de Agricultura Familiar. A inscrição, 3 quilos de alimento não perecível para o Bahia sem Fome; o percurso, na orla de Salvador, de 5 quilômetros. Tudo muito bem organizado, junto com a turma do Corrida Perfeita. 
Sábado cedinho, os corredores já estavam no Jardim de Alah. Eu mais caminhei que corri, mas valeu muito a experiência. No final, no café da manhã caprichado, havia potinhos com cuscuz soltinho, uma ideia ótima (até me inspirou a fazer para o almoço um cuscuz com verduras e atum, que ficou muito bom). 
Agora é ver se engreno mesmo na corrida. Uma medalhinha simbólica já ganhei por ter dado a largada. 

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

Arquivo do blog