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terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Transpondo o limiar

As mudanças não me assustam, mas desde que vim para Salvador sabia que não ganharia a cidade de uma hora para outra. Muitos amigos em São Paulo perguntaram se eu não pensava em voltar para lá. Mas eu respondi que era uma oportunidade única de conhecer esse mundo imenso que é Salvador. 
Como iniciar esse mergulho? Até para flanar, é preciso ter um mínimo de conhecimento local, ainda mais com a violência crescente em toda parte. Mais difícil ainda, eu sabia, seria fazer novos contatos. Todo lugar tem seus recônditos, sua organização própria, suas bolhas. Salvador não seria diferente, e como furar bolhas com meia dúzia de amigos na cidade? 
Tenho cá para mim que um caminho é dizer sim aos eventuais convites e manter ativas as redes de comunicação. E vencer a preguiça, sempre! Amizade e preguiça não combinam, a menos que seja para curtir uma preguicinha boa junto com os amigos. 
Por isso outro dia venci a minha preguiça-quase-prostração e fui ver Cristovam Buarque aqui pertinho de casa. No final, por ter sido um encontro divulgado em cima da hora, só éramos seis pessoas, contando com Cristovam e esposa, e sete com o dono do local. Se por um lado é de lamentar que outras pessoas não tenham tido a oportunidade de ouvi-lo, por outro, que sorte a dos poucos que lá estavam! Fiquei frente a frente com esse homem que ama a educação, que foi ministro, governador, senador, contemporâneo de Brizola e Darcy. Que fala firme e mansamente, que ouve e valoriza o interlocutor. Foi uma noite inesperadamente mágica, um presente da vida. Ainda por cima, me lembrei de meu avô ao contemplar aquele nordestino de sotaque marcado e olhar acolhedor. 
Também aceitei convite de Cris para ver a saída dos blocos afro no centro de Salvador, uma lindeza. Como eu tenho percebido, a Salvador real, negra, parte da Bahia real, estava ali nas ruas, cantando e dançando todas as músicas que conhecem tão bem. Além do cenário privilegiado da praça Castro Alves, com o pôr do sol mais lindo, houve o encontro dos trios, sendo o mais emocionante o que aconteceu entre os Filhos de Gandhi e o Cortejo Afro. No final, vieram Olodum e Ilê Aiyê para balançar a multidão e fechar a noite, que só finalizamos no Rio Vermelho, com o saudoso acarajé da Dinha.
Voltei à Concha Acústica para ver Ney Matogrosso, essa entidade maravilhosa que continua em plena forma e performance. Na companhia de Jô e sob um luar de pura prata, cantei a plenos pulmões junto com as milhares de pessoas que foram prestigiar o mais felino dos nossos artistas. 
Não tenho fotos documentais, mas com Cris e Júlio fui também ver Gerônimo no Pelô. Quer dizer, mal vimos, porque o lugar estava tão lotado que só dava para vislumbrar a peninha vermelha do chapéu que ele usava. Mas que potência! De Oxum ao Caribe, ele botou todo mundo para cantar e dançar, acompanhado de uma banda maravilhosa. Isso quer dizer que o Carnaval já vem vindo. E eu vou indo ao encontro dele e de tudo que essa cidade tem para oferecer.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Ruído ao redor

Eu adorei o filme O som ao redor (2013), de Kleber Mendonça Filho, com o ótimo Irandhir Santos. Não sei se foi proposital que a captação de som das falas dos atores fosse abafada pelos ruídos ao redor, mas o fato é que isso contribui para a impressão realista do filme. Belezas da ficção.
Na vida real, um dos motivos para minha mudança de casa foi o barulho de uma obra nos fundos do prédio. Insuportável para quem trabalha em casa. Isso, somado ao calor infernal e à aridez da paisagem, foi mais do que suficiente para minha busca por outro bairro, que tivesse mais verde, qualidade de vida e silêncio.
Acho que o verde está garantido por ora, mas não o silêncio. Nem reclamo dos cachorros na vizinhança, que são muitos, mas vi que fugir das obras é impossível em São Paulo. Em meio ao infinito trabalho de indexação de conteúdos que estou fazendo (pelo menos, a nova casa é muito mais fresca), ouço a sinfonia de serras, coisas sendo demolidas, escavadeiras, vinda de todas as direções. Não há mais possibilidade de paz para quem vive nesta cidade: além da violência crescente, da intolerância, há o ruído ao redor - no fundo, como no filme, trilha sonora perfeita para o caos que nos cerca.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Pai, afasta de nós esse cálice

Já disse por aqui que não sou uma rata de Facebook. Mas nas últimas semanas tenho visitado muito mais as redes sociais, tudo por conta da violência (eu ia dizer que tem se abatido, mas mudei de ideia, pois não é uma coisa nova ou súbita) que tem mostrado as garras e a cara medonha em São Paulo, e em outras cidades brasileiras, provocada pelo manifesto popular.
Toda manifestação coletiva em prol de melhoras sociais é válida. Isso nem se discute. O vandalismo é que não vale, ou melhor, invalida qualquer manifestação bem-intencionada. Vimos ônibus sendo pichados, estações de metrô destruídas. Mas nada que se comparasse à ação policial que usou como desculpa os danos ao patrimônio para descer o pau na população.
E sem essa de "atiraram indiscriminadamente". A questão é outra. Não deveriam atirar, mas apenas conter, evitar maiores tumultos. Ou a ideia de "segurança pública" tem diversos pesos e medidas? A culpa pelo pânico da população que tentava voltar para casa foi só dos manifestantes, ou das balas de borracha e do gás lacrimogênio que tomaram as ruas? Perguntas retóricas, é claro. O Leonardo Sakamoto publicou em seu blog um texto que trata dessas questões e que eu assinaria satisfeitíssima embaixo.
É claro também que onde há massa há o risco de confrontos. Por isso houve também um ou outro policial sendo ameaçado (um até apanhou!). Por isso a polícia, que ainda por cima é despreparada e mal comandada, se sentiu gigante e avançou feroz contra a população. Na minha opinião, porém, está acontecendo um tsunami social, provocado por despertar súbito x reacionarismo que em SP ainda é determinante. Foi como se as placas tectônicas da indignação que se movem há tempos nas profundezas da cidade fizessem irromper as ondas gigantes de protesto. Ora, quando um grupo longamente submetido resolve sair do controle, se manifestar contra o estado das coisas, a reação pós-surpresa é de extrema covardia. Até mesmo esse grupo pode parecer atordoado no início, como quem fica cego com a luz do sol por ter se acostumado à escuridão e se lança a esmo ao combate. Mas não se mantém letárgico quando vê "emergir o monstro da lagoa".
Sim, é assustador como as cenas a que temos assistido lembram em tudo as da ditadura militar, que Chico Buarque registrou em "Cálice". Mas hoje já não cabe calar a voz de tantos - e aqui quero celebrar a força das redes sociais bem utilizadas. Em vários países há pessoas se unindo aos brasileiros que protestam contra o aumento das passagens, contra a proibição ao direito de ir e vir, contra a castração à cidadania, que pressupõe entre outras coisas a fruição da cidade. Há muitos olhos olhando para que os mandantes posem de dignatários da lei e da ordem sem serem dignos delas. 

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Onde todos os caminhos se cruzam

Quando, no século XIX, os urbanistas começaram a usar o termo "artéria" para descrever as grandes vias que brotavam nas cidades modernas (especialmente Paris), nem imaginavam o que viria pela frente: um volume tamanho de veículos que provocaria o entupimento geral das veias urbanas, prenunciando o completo colapso de órgãos urbanos vitais.
Terá chegado o dia do Grande Congestionamento profetizado por Ignácio de Loyola Brandão em Não verás país nenhum?
Parece que estamos perto. E o filme de Phillipe Barcinsky, Não por acaso, de 2007 ("não por acaso" produzido por Fernando Meirelles - suspeito que vêm daí as tomadas maravilhosas do centro de São Paulo, que reapareceriam de forma mais apocalíptica em Ensaio sobre a cegueira, de 2008) mostra o lado humanizado do caos urbano, com personagens que pensam ter controle sobre tudo - um deles, o engenheiro de tráfego Ênio (o sempre ótimo Leonardo Medeiros), pensa controlar inclusive a própria cidade, que enxerga como uma rede lógica e perfeitamente interligada.
Bom, acho que nem preciso dizer que um mesmo evento trágico terá efeito sobre as certezas dos personagens - mas também trará mais luz às suas vidas.
Acho que por isso me encantei tanto com a imagem dessa janela, que traz o sol para dentro de um quarto vazio, onde entra a filha recém-descoberta de Ênio - só um dos exemplos da bela e nada gratuita fotografia do filme.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Meninos, eu vi - Bom Retiro 958 metros

Eu tiraria só uns 15 minutos de texto do último espetáculo do Teatro da Vertigem, em sua segunda temporada. Mas só - Bom Retiro 958 metros é praticamente irretocável.
Renascido de uma crise que ameaçou acabar com o grupo, o Vertigem impressiona com sua produção impecável, com atuações envolventes, com a capacidade de nos fazer parte silenciosa do espetáculo - mas nunca meros espectadores.
Andamos pelas ruas desertas (ou quase - bolivianos e coreanos dão as caras volta e meia, numa figuração involuntária) do Bom Retiro em pleno feriado prolongado de Carnaval, ora como multidão de consumidores, ora como zumbis. Invadimos um shopping fechado e sentimos ali o coração que jamais para de bater, junto com o da compradora que se transforma em seu objeto de desejo. Seguindo um Caronte feminino (ou um Diógenes, que leva um tablet em vez de uma lanterna?), assistimos ao próprio Apocalipse se desdobrando ao nosso redor. O Hamlet cracômano (maravilhoso Ícaro Rodrigues) se equilibra no alto de um muro muito alto, e conversa com sua pedra, cada vez maior. A faxineira filosofa (a incrível Mawusi Tulani), a rádio Infinita hipnotiza os insones, a noiva-Ismália tenta chamar à razão. Estamos cercados - só nos resta caminhar em meio aos escombros de manequins desnudos ou em chamas, roupas rasgadas, lixo, mais cracômanos, pessoas socialmente invisíveis. E buscamos um refúgio inútil na sinagoga abandonada.
Como os atores conseguem estar em toda parte ao mesmo tempo? Como o grupo conseguiu convencer a CIDADE a atuar? Como o mergulho no Letes desperta a memória aos gritos? Como ficamos divididos entre a urgência do fim e a estupefação quando tudo acaba? Como ao final o público bate palmas longamente (minutos e mais minutos) sem emitir um som? Parece fruto de encantamento, mas, claro, é só vertigem.
Por isso recomendo: não deixem de assistir até o final de março ao verdadeiro fim do mundo.

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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