Mostrando postagens com marcador padrões. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador padrões. Mostrar todas as postagens

sábado, 28 de novembro de 2020

Uma imagem toda minha

Eu ia me apropriar do título do álbum e da música de Chico César, "Respeitem meus cabelos, brancos", mas depois pensei que este post não era só sobre isso, sobre padrões, intolerância, cabelos. Tinha mais a ver com a construção da imagem feminina ao longo do tempo, com as autorizações e proibições que recebemos em relação a nossa imagem. Mulheres mais velhas não podem ter cabelos longos, mulheres não podem ter cabelos brancos, mulheres não podem usar roupas curtas, mulheres não podem não se depilar nem exibir suas estrias ou barriga na praia. Mas meninas têm sido estimuladas a imitar princesas, a usar maquiagem mirim, a fazer biquinho e pose de adultas nas fotos. 
Daí me lembrei do ensaio Um teto todo seu, da Virginia Woolf, uma das primeiras escritoras a debater claramente o papel da mulher no mundo, sobretudo esse papel inventado para ela, e como isso influenciou diretamente a carreira de tantas mulheres para além da vida doméstica. Soube desse livro (eu só li dois de Virgina Woolf, Orlando e Entre os atos) por minha cunhada, hoje a principal tradutora dos diários da inglesa para o português. Pensei logo que além do teto todo meu, também quero ter direito a uma imagem toda minha, livre dos padrões impostos a nós mulheres, e ainda mais depois dos 40 anos, quando quase deixamos de existir para a sociedade. 
Outro dia, percebi que meus cabelos não estão só cada vez mais brancos como também mais ondulados. A tal da perda de queratina para a qual Emerson sempre me alertava. Não sei quanto tempo demora para que os brancos tomem a cabeleira toda, eles estão ainda semiescondidos - adoraria que ficasse algo uniforme, como os da Glória Pires, cabeluda como eu e que tem sofrido críticas por "assumir os brancos", como se não tivesse direito a essa escolha. 
Só sei que quando ergo os cabelos, vejo fitoplânctons brilhando, a prata surgindo de um rio avermelhado. Se a prata tomar conta, vou deixar, mas imagino já as críticas e narizes torcidos, de perto e de longe.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Onde cabemos ou Da poesia de viver

Assim como algumas vezes nos decepcionamos ao tentar vestir algo e perceber que não nos cai bem, acontece também de, numa só tacada, vestirmos roupas que parecem terem sido feitas pra nós. Na semana passada, tive essa experiência em uma loja à qual nunca tinha prestado atenção. Vi na vitrine, quase indo embora do shopping, uma peça com estampa bonita, ao lado de outra também bonita. Depois, o cartaz de "promoção". Pensei: não custa dar uma espiada.
Para minha surpresa, havia muitas peças com minha cara, com preço mais acessível do que em outras lojas onde costumo comprar. Surpreendentemente, o que me caía bem era tamanho P. A vendedora, em nenhum momento, tentou me empurrar nada, nem me propôs combinações bizarras de roupas. Foi super atenciosa, ágil, eficiente e simpática. Pronto. Achei uma loja para chamar de minha.
No fundo, o que aconteceu na lojinha acontece na vida o tempo todo. Uma amiga das antigas, Cris, costumava dizer que só ficava "onde cabia sua alma". Eu tomei pra mim, já devo ter dito isso, tal verdade. Quando a coisa aperta, e a vida traz tempestade, traço meus planos de fuga A, B e C. E às vezes a vida vem num abraço, suave como a brisa. Tudo se encaixa, de forma natural - às vezes, tão natural que esquecemos de agradecer.
Viver é pura poesia. Nem sempre doce, nem sempre trágica - poesia.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Espelhos, padrões e outras coisas pontiagudas

Estou terminando de ler a tetralogia napolitana de Elena Ferrante, pseudônimo de uma escritora contemporânea de língua italiana. Há quem diga que se trata de um autor, mas acho pouco provável, já que as navalhadas na carne ao longo dos quatro volumes (A amiga genial, História do novo sobrenome, História de quem vai e de quem fica, História da menina perdida) soam a uma memória feminina, mais crua que violenta, como os escritos de Clarice Lispector, Patricia Highsmith e Carson McCullers, em que pesem os diferentes estilos. Mas isso é assunto para outro post, a crueza feminina mais terra a terra, a crueldade masculina mais associada à cultura, segundo minha certamente modesta opinião.
Bom, o fato é que me vi nas histórias contadas por Lenu, protagonista e xará de Ferrante. Dentre outras questões, pela da autoimagem que constrói ao longo da vida, a relação com o próprio corpo e com o corpo do outro etc. Serei a única? Claro que não - Ferrante é o fenômeno que é pela capacidade de empatia que seu texto traz de forma tão fluida.
Eu mesma, por muito tempo, não gostei do que vi no espelho. Ou melhor, evitava me olhar nele porque só enxergava uma imagem indefinida, um borrão do que eu era. Talvez fosse a miopia, mas certamente era também uma recusa de si. Por outro lado, nunca quis me parecer com outra pessoa, ter outra aparência, outro corpo. A presença paterna também tornou complicado me reconhecer como mulher: era quase um sinônimo de vulgaridade; cuidar-se era sinônimo de idiotia e superficialidade. Também o apreço pelas artes, a leveza, a alegria, tudo isso foi sendo posto sob vigilância. Só queria me transportar por aí em um invólucro neutro, ser simplesmente aceita.
Porém, o mundo rejeita a neutralidade com seus padrões. Não se pode ser neutro, mas também não é desejável o ser diferente. A respeito da aparência, lembro-me de uma colega de trabalho ter dito que eu vestia bem todas as roupas por ser a pessoa com o corpo mais "regular", "proporcional", que ela conhecia. Na mesma época, visitando um brechó de um conhecido, experimentei uma blusa que não me caiu bem, mas serviu a outra colega, e tive de ouvir do dono do brechó, com a voz mais afetada possível: "É que você é fora do padrão, né?". Fiquei sem palavras. O que significava esse padrão? Cintura fina, bunda grande? Não há povo mais diverso que o brasileiro, e esse padrão a que ele se referia é uma falácia. Mas a fala fere, atravessa o invólucro, e tanta gente sofre por tentar se adequar ao suposto padrão e não conseguir.
Minha "cápsula protetora" contra as estocadas alheias acabou sendo o conhecimento; na verdade, um outro tipo de padrão que permite caminhar em freguesias diversas, ainda que não em todas. Afinal, dentro desse padrão, mesmo que mais amplo que o da aparência, ainda é preciso lidar com as questões "de classe".
A personagem de Elena Ferrante também acaba por descobrir que nada nos protege mais que a autoaceitação. Saber o que é importante de fato para si, auscultar-se. Talvez para a maioria das pessoas isso só venha com o tempo, com a tal maturidade, quando nos importamos cada vez menos com a opinião dos outros e conseguimos ouvir com mais clareza a voz interior. Uma pena que esse encontro tão importante e apaziguador possa demorar tanto a acontecer; por outro lado, as marcas que trazemos a essas alturas são o que nos distingue uns dos outros, torna-nos únicos e inutiliza (ou deveria) toda forma de comparação inútil.

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

Arquivo do blog