quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Marighella, bordado e a necessidade de mais cor e poesia para a luta

Li há alguns dias um texto ótimo da sempre ótima Ana Paula Xongani sobre o filme Marighella, dirigido por Wagner Moura e por fim disponível nos cinemas brasileiros após dois anos de boicote descarado do genocida governo atual. 
Não bastasse o interesse na figura de Marighella, ainda havia a questão de honra de assistir ao filme boicotado pelo Bozo e de formar parte da resistência ao desgoverno e ao desmonte das políticas sociais no país. Eu gostei muito da atuação de Seu Jorge como o destemido líder revolucionário baiano, que eu conheci dos célebres livros de Jacob Gorender e frei Betto, dos relatos de meu primo Takao e da poesia do próprio Marighella. A visão que eu tinha do líder da ALN era de um cara mais incisivo em tudo, um Ogunzão à frente da batalha (mas daí descobri que ele é de Oxóssi, um orixá caçador, mas mais low profile, estratégico, menos atirado). 
Xongani chama a atenção, contudo, para o fato de não se falar tanto do lado poético de Marighella, de todos os camaradas brancos serem heroificados e de tudo descambar para muita violência no filme - sim, acaba sendo um filme de ação e violento, embora não de uma violência gratuita, mas a que temos em mente quando falamos da ditadura brasileira dos anos 1960-70. Imagino que isso se deva a uma escolha do Wagner Moura, de enfatizar uma história que corre o risco de cair no esquecimento. Mas concordo com ela de como essas escolhas acabam por associar não só à galera de esquerda a violência da guerrilha urbana, mas também reiteram a violência associada às pessoas negras - e não era ele o líder da galera que assalta bancos e aterroriza os cidadãos de bem? As demais personagens negras, mulheres, por sua vez, pouco destaque têm na história. OK, há uma licença poética de transformar os freis Ivo e Fernando, da Livraria Duas Cidades, no pastor Henrique Vieira, que aproveita uma deixa para falar do Jesus histórico, provavelmente de pele escura. 
Depois de ler o texto dela, me ocorreu que uma figura importante como Takao não tenha sido mencionado. Sempre me chamou a atenção um revolucionário oriental no Brasil. E ele, que estava à frente do GTA, não está no filme nem mesmo com outro nome, como acontece com Joaquim Câmara ou com Sérgio Paranhos Fleury. Ainda não terminei de ler a biografia que deu origem ao roteiro para saber se Takao aparece na história, mas fiquei pensando se isso não tinha a ver com questões de pele também. Sei lá, me ocorreu.
Calhou que, em meio ao bordado, estava também montando minha paleta de cores de pele para representar esse Brasil tão pouco branco, tão mais mestiço. Como fazem falta, em todo tempo, a cor e a poesia para fortalecer as lutas diárias por igualdade, respeito e justiça.

Quem tem medo do novo?

Nunca fui de ter medo do novo. Aliás, pelo contrário, o novo sempre foi a base sobre a qual me movi. Talvez porque eu sempre estivesse mesmo em movimento, tudo era novo, todas as paisagens eram novas. Sempre fui mezzo heraclitiana, mezzo aristotélica. Por isso me faz tão mal a estagnação. 
Apesar das mudanças constantes, sempre havia alguma segurança, o mínimo de controle de riscos. O problema hoje é que tudo é tão inseguro, tão imprevisível e instável que, no lugar da esperança, vem a ansiedade. Até o novo é outro, soa mais a má notícia que a novidade. Não sou eu que me movo, é o chão que se move sob meus pés. 
Eu me lembro de uma época de carestia, na minha juventude, em que a cada dia os produtos no supermercado tinham um preço diferente. Isso voltou a acontecer agora, com dimensões agigantadas, lançando muito, mas muito mais pessoas à penúria alimentar. Hoje não consigo só lamentar como está tudo tão caro para nós - sendo repetitiva, não é humano ignorar a fome de milhões. Isso me deprime enormemente. 
As surpresas más de que falo são desse teor de desumanidade - qual a notícia ruim do dia, sempre me pergunto - mas também englobam o crescimento de aproveitadores da miséria. 
No final das contas, não há como evitar o novo, e há quem tente tão somente ignorá-lo, o que não quer dizer que não está ali. E por que o ignoraríamos, em vez de aprender a dançar com ele, às vezes duelar com ele? Tudo muda o tempo todo, no mundo. Já dizia Heráclito, sempre nos lembra Lulu.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Bordado libérrimo

Por esses dias, resolvi iniciar o projeto do vestido bordado. Já não me lembro qual foi a motivação, talvez um grupo de artistas em Piaçabuçu que lutam pela preservação do rio São Francisco por meio da arte, talvez a busca de algo para combater a ansiedade. Até ia aproveitar pra dar uma praticada na aquarela, fazendo um esboço do bordado, mas já fui logo traçando as margens do rio para depois pensar nos elementos que colocaria. 
Não desenhei tudo de uma vez, como costumava fazer, para manter o foco no que estiver bordando e assim evitar a ansiedade de terminar logo, o que poderia me levar a desistir da tarefa. 
Aos poucos estou pesquisando pontos novos e antigos, imagens ribeirinhas e decidindo aos poucos a disposição das cenas. Andei apanhando bastante no nó francês, que já fiz tanto, ao decidir bordar um ipê amarelo. Quando canso (porque, como o ponto areia, o nó francês "rende" pouco), trabalho em outro desenho, como o dos queridos mandacarus, usando ponto-atrás e corrente. Até começo a inventar umas soluções, e me sinto mais criativa que nos outros projetos, em que acabava repetindo uma meia dúzia de pontos. Um bordado mais livre mesmo.
Gosto do que vai saindo, apesar de saber que o processo ainda é longo. Mas já ouvi elogios ao trabalho feitos pelo marido, que, quando soube que eu ia bordar um vestido, achou pouco provável que seria algo "vestível", pois um vestido todo bordado "é mais coisa de artista", não é algo que pessoas normais usam (ou fazem). Prova de que nunca sabemos tudo sobre as pessoas, nem mesmo sobre as pessoas com quem convivemos. 

sábado, 16 de outubro de 2021

Subversões alimentares

Daí que, dos 7,5 kg perdidos com orientação da nutricionista em cerca de seis meses, reencontrei 5 kg ao longo da pandemia. Não é de espantar, já que andei cozinhando muita comfort food, doces, receitas com manteiga e gordura e me exercitando muito menos, além do estresse com pandemia, contexto nacional e trabalho triplicado. 
No primeiro semestre deste ano, também recomeçaram minhas alergias, que tinha associado à época - só porque calhou de acontecer na mesma época em anos anteriores; se estivesse em São Paulo, diria que é pelo ar mais seco do outono, o que, claro, não é o caso aqui. O muco, eu já sei, tem a ver com consumir muitos lácteos, mas não tinha pensado em nenhuma relação da alergia com permeabilidade intestinal. Quando fui procurar outra nutricionista, porque a anterior entrou em licença-maternidade, encontrei uma que trabalha com essa abordagem, de considerar uma alimentação menos inflamatória para possíveis casos de intestino permeável. 
Eu já tinha lido algo a respeito no livro sobre digestão, que comprei há dois anos, quando estive em SP e passando muito mal. Agora me aprofundei um pouco mais, depois da conversa com a nutri, que me recomendou reduzir um pouco os lácteos e a carne, apostando em proteínas vegetais para complementar as refeições. Adoro leguminosas, mas tinha cortado a pedido de Guga, que estava reduzindo bastante os carboidratos de todo tipo. 
Claro que não dá para ficar só no arroz com feijão - e eu já vinha comprando grão de bico, feijão fradinho e lentilha para cozinhar de vez em quando. Depois de experimentar as almôndegas de lentilha e ter conseguido congelá-las, resolvi fazer também falafel (e congelar) e homus. O falafel foi inclusive subvertido com o acréscimo de um pouco de cenoura. Também usei feijão fradinho em uma receita de curry com cogumelos (usei shitake fresco) e molho de tomate - ficou ótimo, e ainda aprendi a fazer chapati, um dos pães indianos. 
A quinoa é bem versátil e substitui o arroz, com a vantagem do aporte proteico e nutritivo que ela traz. Como hoje tinha sobrado espinafre, fiz um "quinoto" (achei que tinha inventado a palavra, mas já tinha gente usando) de espinafre, salsa, parmesão e castanha do pará ralada. Eu adorei - o marido achou OK. 
Já tenho ideias para arroz negro, quiche de grão de bico, alho poró e palmito, pão de ervilha e pasta de ervilha (esta sugerida pela nutri). 
Na verdade, emagreci pouco depois de ter mudado a alimentação. Estou retomando, aos trancos, os treinos na academia, sempre cheia. Mas já sinto que meus episódios alérgicos têm reduzido bastante. Ainda como doces de gula, mas se pensar um pouco mais nem sinto tanta vontade assim. 
Com a alta dos preços, a tendência é realmente aproveitar tudo que temos na geladeira, porque não está fácil não. Reduzir as quantidades, aproveitar a sazonalidade, mas manter a qualidade do que comemos. Uma coisa de cada vez. 

E, afinal, prosseguimos

O brazyl está uma desgraceira tão grande que é difícil até pensar como é possível prosseguir em meio a tanta corrupção, iniquidade e ódio - porque não é mais possível falar apenas em intolerância já que pululam as violências diárias contra quem representa a diversidade ou queira levantar-se contra a opressão histórica colonialista e patriarcal. Ao redor, a hecatombe mundial ganha contornos mais fortes, com a crise financeira na China, os movimentos antivacina, o crescimento de governos antidemocráticos. Em toda parte, tem mais gente passando fome, adoecendo, vivendo precariamente, sendo assassinada de uma forma ou de outra.
Não tenho, pessoalmente, muita esperança no futuro próximo. Meu desânimo é enorme, de um tamanho que nunca vivi antes. Supera, de longe, as dores de amor, as frustrações pessoais. Porque é difícil fazer planos no meio do Apocalipse, e, embora soubéssemos desde sempre das desigualdades que nos cercam, todo o horror foi de tal modo desvelado que soa como indecência ter desejos, aspirações, sonhos. 
De repente, o discurso de "fazer diferença" parece vazio se não tiver como escopo realmente arregaçar as mangas e atuar concretamente na realidade - é muito vago só pensar "serei um ótimo profissional" e pronto. Minha pergunta diária, para mim e, secretamente, para os outros, tem sido: o que você tem feito pelo outro? Ainda que reste algo do ranço ocidental utilitarista nesse pensamento, há também nele uma implosão do pensar somente em si, tão próprio do Ocidente capitalista. 
As respostas acabam vindo justamente do outro lado, de tudo que não representa a cultura ocidental, patriarcal e colonialista. Vêm das mulheres, dos negros, dos indígenas, da comunidade LGBT, dos pobres. Dos éticos, dos solidários. E da natureza. Aliás, foi a flor da rosa-do-deserto brotando que me fez lembrar que tudo prossegue, apesar do horror e apesar dos meus descuidos com as plantas. As sobreviventes, resilientes, continuaram sua existência sem mim, mas exultaram quando receberam nova camada de composto e voltaram a ser regadas no final da tarde. Ver o milagre da multiplicação nas espadas-de-são-jorge, que chegaram em quatro e hoje são mais de vinte, a resistência da árvore da felicidade, que por fim se enraizou e buscou o céu - tudo isso me dá outra dimensão do viver e do presente. Tento imitá-las nessa vocação de contrariar o que é instituído, o peremptório, o definitivo, movendo-me ainda, lembrando-me de respirar e de descascar cebolas quando me cabe descascá-las.  Prosseguindo. 

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Cadê a boa-nova a andar nos campos?

Meu espírito romântico sempre me traz à mente os versos de "Sol de primavera" logo nos primeiros dias de setembro. Mesmo vivendo um dia por vez, buscando o presente a toda prova, espero também, junto com Beto Guedes, que a boa-nova venha andar nos campos. Mas está cada vez mais difícil na distopia real em que vivemos, no mundo mas principalmente neste brazyl desgovernado e colonial velho de guerra. 
Não sabemos como será o futuro no trabalho, já que a área de educação, especialmente a pública, tem sido solapada sem descanso pelo desgoverno. A coisa é tão séria que, no dia do centenário de Paulo Freire, em que posto um comentário sobre o recifense-careca-querido-patrono-da-educação-reconhecido-mundialmente, tenho que ler um "Já foi tarde", e depois a manjada fala com colorações fascistas de que o que Freire queria mesmo era formar militantes, e não educadores, e por culpa dele a educação brasileira está um fiasco. Mas gente.
É chato ter que bloquear uma pessoa, mas não dá mais pra perder tempo com quem escolhe a ignorância, a injustiça, as inverdades. Apesar de seus posicionamentos duvidosos, eu a mantinha entre meus contatos por um carinho pelo passado (muito passado, na verdade, e en passant) comum. E para quê? Para a pessoa, tão estudada, vir veicular mentiras na minha página. Que tempos! 
A situação é mesmo tão feia pra educação que vemos, eu e Guga, nosso projeto de segunda graduação fazendo água com a má qualidade dos serviços prestados pela universidade (não pública). Optamos por cursos semipresenciais, mas tudo é muito desorganizado, a ponto de o conteúdo da aula síncrona não bater com o material didático digital nem com o que é pedido nas tarefas ou no simulado. Simplesmente, é impossível saber o que estudar. A bibliografia de referência, por exemplo, é para especialistas, não para principiantes, e os professores, em seis aulas de 50 minutos, repetem as mesmas informações seis vezes, o que não ajuda em nada. Pela primeira vez na vida, resolvi não fazer uma tarefa dada - e mesmo assim fiquei na média. A atividade mais tosca que entreguei, feita de qualquer jeito, mereceu 10. Como é possível levar a sério? Que tipo de profissional pode se formar assim?
Hoje, ainda por cima, o nefasto inominável fez seu discurso de realidade paralela na ONU, lançando mais uma vez o país à chacota geral, para coroar a horrível situação social e econômica em que já estamos. Como é possível alguém duvidar do poder transformador da educação diante disso tudo? A ignorância só deixa cada vez mais longe de nós qualquer tentativa de primavera, afasta de nós o sol e as boas-novas. 

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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