quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Antes bem acompanhada do que só

Tem um diálogo atribuído a Hemingway, mas que nunca encontrei em nenhum escrito seu, menos ainda em Por quem os sinos dobram, obra na qual figuraria o trecho mencionado: "- Quem estará nas trincheiras ao teu lado? - E isso importa? - Mais do que a própria guerra." Para além do fato de que isso não tem muita cara de Hemingway, a ideia em si é válida: a companhia faz toda diferença.
Curtir a própria companhia é fundamental, sem momentos de solitude não nos conhecemos de fato. Mas como é bom ter bons amigos ao redor! Como é bom rir junto, lembrar de coisas, algumas nem tão antigas, construir memórias, ter testemunhas da vida, da nossa existência. Creio que, sim, vivemos independentemente disso, porque respiramos, caminhamos, comemos, dormimos - biologicamente falando. No entanto, existirmos para alguém nos dá uma sobrevida - filosoficamente falando. E o que é a memória senão isso mesmo? 
Quando encontro Vivi e falamos de nossos tempos de Bienal, mas também do viver hoje e dos planos futuros, isso é puro reencantamento da memória. Percorrer o caminho da Lavagem do Bonfim com Liu, Igor e Suli é criar momentos inesquecíveis e solidariamente tecidos com o mar de gente, o sol dentro de cada um e a cantoria em toda parte. E rever Bot e sua linda família é testemunhar o encontro de passado e futuro no presente ensolarado das ladeiras do Pelô, em que falta tempo para tanta conversa, mas o prazer de estar junto é uma promessa de reencontro próximo. Essas pessoas todas fazem a diferença na caminhada, tornam-na mais agradável, emprestam-lhe sentidos. Enquanto vivermos, todos viverão.

domingo, 7 de janeiro de 2024

Turistando em Salvador

Recebi a primeira visita paulistana em Salvador - Marise. Ela veio para passar o ano-novo, e fizemos render a estadia dela aqui. Depois do pôr do sol no Farol da Barra, aceitamos um convite para festa de réveillon com amigos recentes para já iniciar o ano com o pé direito.
Fomos ao desejado restaurante de dona Susana, na Gamboa, o Re-restaurante, que apareceu até em série da Netflix. A fofíssima dona Susana oferece uma comida maravilhosa: a moqueca de 70 reais serve facilmente até 3 pessoas, com o bônus da vista incrível para o mar. 
Palmilhamos o Pelô numa tarde, revisitei a Fundação Casa de Jorge Amado, onde Marise me rejuvenesceu uns 20 anos numa foto. Tudo muito lotado nesta época, mas tomamos um sorvete na Cubana antes de pegar o elevador para a Cidade Baixa. Achei que o Mercado Modelo deu uma encolhida em termos de mercadorias após a reforma, tudo muito massificado e caro. Lembrei Marise que os produtos de beber e comer poderiam ser encontrados mais em conta no Ceasinha, mesmo não sendo o lugar mais barato para comprar em Salvador. A Casa da Música ficou para uma próxima, porque já tinha fechado.
Fizemos também o périplo Rio Vermelho, com Ceasinha, Casa do Rio Vermelho, onde eu moraria tranquilamente, e acarajé da Dinha, onde encontramos Márcio e o garçom queria nos convencer de que tínhamos tomado seis cervejas em vez de quatro - um lugar a não voltar mais.
Por fim, fomos com George ao Bonfim, que já se prepara para a Lavagem na próxima semana, demos um rolê na Ribeira e na fila do Sorvete da Ribeira, um fenômeno de público, para terminar a andança em Santo Antonio Além do Carmo, esse chuchu de bairro. 
Bom demais estar com as pessoas queridas, colocar a conversa em dia, com esse sol que brilha em toda parte. Salve Salvador!

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Transpondo o limiar

As mudanças não me assustam, mas desde que vim para Salvador sabia que não ganharia a cidade de uma hora para outra. Muitos amigos em São Paulo perguntaram se eu não pensava em voltar para lá. Mas eu respondi que era uma oportunidade única de conhecer esse mundo imenso que é Salvador. 
Como iniciar esse mergulho? Até para flanar, é preciso ter um mínimo de conhecimento local, ainda mais com a violência crescente em toda parte. Mais difícil ainda, eu sabia, seria fazer novos contatos. Todo lugar tem seus recônditos, sua organização própria, suas bolhas. Salvador não seria diferente, e como furar bolhas com meia dúzia de amigos na cidade? 
Tenho cá para mim que um caminho é dizer sim aos eventuais convites e manter ativas as redes de comunicação. E vencer a preguiça, sempre! Amizade e preguiça não combinam, a menos que seja para curtir uma preguicinha boa junto com os amigos. 
Por isso outro dia venci a minha preguiça-quase-prostração e fui ver Cristovam Buarque aqui pertinho de casa. No final, por ter sido um encontro divulgado em cima da hora, só éramos seis pessoas, contando com Cristovam e esposa, e sete com o dono do local. Se por um lado é de lamentar que outras pessoas não tenham tido a oportunidade de ouvi-lo, por outro, que sorte a dos poucos que lá estavam! Fiquei frente a frente com esse homem que ama a educação, que foi ministro, governador, senador, contemporâneo de Brizola e Darcy. Que fala firme e mansamente, que ouve e valoriza o interlocutor. Foi uma noite inesperadamente mágica, um presente da vida. Ainda por cima, me lembrei de meu avô ao contemplar aquele nordestino de sotaque marcado e olhar acolhedor. 
Também aceitei convite de Cris para ver a saída dos blocos afro no centro de Salvador, uma lindeza. Como eu tenho percebido, a Salvador real, negra, parte da Bahia real, estava ali nas ruas, cantando e dançando todas as músicas que conhecem tão bem. Além do cenário privilegiado da praça Castro Alves, com o pôr do sol mais lindo, houve o encontro dos trios, sendo o mais emocionante o que aconteceu entre os Filhos de Gandhi e o Cortejo Afro. No final, vieram Olodum e Ilê Aiyê para balançar a multidão e fechar a noite, que só finalizamos no Rio Vermelho, com o saudoso acarajé da Dinha.
Voltei à Concha Acústica para ver Ney Matogrosso, essa entidade maravilhosa que continua em plena forma e performance. Na companhia de Jô e sob um luar de pura prata, cantei a plenos pulmões junto com as milhares de pessoas que foram prestigiar o mais felino dos nossos artistas. 
Não tenho fotos documentais, mas com Cris e Júlio fui também ver Gerônimo no Pelô. Quer dizer, mal vimos, porque o lugar estava tão lotado que só dava para vislumbrar a peninha vermelha do chapéu que ele usava. Mas que potência! De Oxum ao Caribe, ele botou todo mundo para cantar e dançar, acompanhado de uma banda maravilhosa. Isso quer dizer que o Carnaval já vem vindo. E eu vou indo ao encontro dele e de tudo que essa cidade tem para oferecer.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Corrida e cuscuz, tudo a ver, tudo de bom

Uma das coisas que descobri nos últimos anos foi que eu posso correr. Ainda não do jeito que gostaria, que o cardiorrespiratório de pessoas alérgicas tem suas peculiaridades, mas de um jeito em que me acomodo bem. Além do mais, corrida é esse esporte tão democrático, que basta calçar o tênis e sair - claro que tomando todo cuidado para não se machucar, porque o impacto sobre as articulações é muito maior do que numa pedalada (que, por sua vez, acaba se tornando um esporte caro com toda manutenção necessária à bike e exige mais planejamento para a prática - separar roupa, calçado, água, capacete, câmara reserva, verificar pneu etc.). Então, hoje, a corrida me serve melhor, inclusive com fins econômicos. 
Mas, como sempre, estou começando. Ainda tendo de me educar para respirar melhor. Tendo de ter paciência para aguardar o GPS aparecer no relógio e a programar um treino de fato. De todo jeito, vou. E por seguir a Secretaria de Desenvolvimento Regional, por conta da agroecologia, comecei a seguir também a CAR Bahia, e vi que haveria uma corrida de rua ligada à Feira de Agricultura Familiar. A inscrição, 3 quilos de alimento não perecível para o Bahia sem Fome; o percurso, na orla de Salvador, de 5 quilômetros. Tudo muito bem organizado, junto com a turma do Corrida Perfeita. 
Sábado cedinho, os corredores já estavam no Jardim de Alah. Eu mais caminhei que corri, mas valeu muito a experiência. No final, no café da manhã caprichado, havia potinhos com cuscuz soltinho, uma ideia ótima (até me inspirou a fazer para o almoço um cuscuz com verduras e atum, que ficou muito bom). 
Agora é ver se engreno mesmo na corrida. Uma medalhinha simbólica já ganhei por ter dado a largada. 

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Uma vontade que dá, de repente

As marmitas me ajudam demais, não há a menor dúvida. Mas, às vezes, até prepará-las dá preguiça, sobretudo se tiver outra programação no final de semana. Além disso, tem dia que bate vontade de comer outra coisa, diferente do que há no congelador, até porque nem tudo que está lá fica delicioso. 
Outro dia, me deu vontade de comer ceviche, ainda mais com esse calor todo. Pensei em ir até um restaurante que tem mais ou menos perto para provar o ceviche, mas só abre para o jantar, e eu queria almoçar ceviche. Como já fiz ceviche, resolvi me programar para o preparo em casa, sabendo que é uma receita que não dá pra congelar, é comida para degustar na hora. Aconteceu inclusive de ter uma promoção de saint peter congelado no supermercado - comprei, reservei. Hoje segui o passo a passo mais atentamente que da outra vez (quando não esperei o peixe descongelar direito e ele ficou borrachudo), e hoje ficou bem bom. Ainda preparei batata-doce ao murro, ficou ótima, ainda mais gostosa que a batata comum, bem crocante por fora e macia por dentro. E me lembrei de que no Rinconcito Peruano eles costumam servir o ceviche com milho (tudo bem que é o milho do tipo aperitivo, gigante, típico peruano), e mesmo o enlatado combinou super bem. 
Um outro prato que me deu vontade de preparar (este dá pra congelar) foi a galinhada. Fiz na semana passada. Não aquela cheia de bossa feita com pequi, mas uma mais simples, com sobrecoxa de frango e arroz, com bastante cúrcuma e páprica. Aqui também adicionei milho (o mesmo depois usado no cebiche) e cenoura, e ficou ótimo. 

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Afropunk, uma festa de futuros

No ano passado, tive muita vontade de ir ao festival Afropunk em Salvador, que teria, entre diversas atrações, Racionais e Liniker. Mas temia ir sozinha, ainda mais num lugar fora de mão como o Parque de Exposições, em Itapuã (no final das contas, nem é tão fora de mão, tem estação de metrô na frente). Então, este ano, Cris me chamou pra ir, topei na hora. Além da companhia ótima e da experiência inédita, ainda poderia ver Alcione e a bateria da Mangueira - e, com fôlego, Olodum e Baiana System, além de pequenas atrações intermediárias (pequenas mas com alcance próprio, porque todo mundo ali parecia conhecer de tudo).
Chegamos perto do horário anunciado para início, 16h e alguma coisa, mas houve um atraso de quase uma hora. Estava quente, mas o Parque de Exposições é enorme e super ventilado, graças aos céus, e assim não estivemos nem perto da tragédia que aconteceu no Rio de Janeiro, no show de Taylor Swift, em que a sensação térmica dentro do estádio chegou a 60 graus, milhares de pessoas se queimaram nas estruturas de metal e uma fã morreu no meio do show. 
O Afropunk estava bem longe da tragédia. Apesar das agruras da população negra, diariamente, alvo certeiro de tiros por todo o Brasil, e a Bahia tem liderado o extermínio de jovens negros pela polícia, aquele era dia da festa dessa juventude. Num primeiro olhar, eu diria que 95% do público era negro e 60% era LGBT. Minhas fotos não fazem jus ao desfile belo e orgulhoso que vimos à nossa frente, com centenas de tranças, cachos, quimonos, batas, abadás, turbantes, estampas, brilhos, conchas e búzios. Quanta gente linda naquele desfile da diversidade!
Minha maior surpresa foi a quantidade de gente se espremendo no momento do show de Alcione, maravilhosa, potente, sempre simpática. Achei que o ápice seriam o Olodum e o Baiana System, que não vimos porque era muito tarde, e tínhamos, eu, Cris e Julito, compromissos logo cedo. Mas até ali o ápice foi a Marrom, que deixou pequena até a bateria da Mangueira (e a galera não estava ali pelo samba-enredo, estava ali pela sofrência embalada pelo trumpete que a maranhense tanto gosta). 
Foi demais participar dessa festa, tão alegre, bem organizada e democrática. Bom demais ver essa juventude normalmente violentada tendo seu espaço, sua expressão respeitados, e dessa forma se empoderando e podendo vislumbrar o futuro. 

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

Arquivo do blog