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domingo, 9 de agosto de 2020

Bey, representatividade e skin tones

Daí que um dos grandes assuntos nos últimos dias foi a fala infeliz de Lilia Schwarcz sobre o álbum visual de Beyoncé. Eu nem conheço muito o som de Beyoncé, só estou ciente da sua importância para a representatividade negra ao redor do mundo, do seu papel de diva pop que há tempos substituiu Madonna, do seu trabalho sempre esmerado em canções, clipes e shows. Mesmo assim, quando li a crítica de Schwarcz, achei-a descuidada e arrogante, ao sugerir que a forma como Beyoncé queria representar sua ancestralidade africana estava errada, que ela devia "deixar a sala de estar". 
Ninguém deve negar a importância de Lilia Schwarcz para os estudos sobre escravidão e diáspora africana no Brasil e no mundo. É uma das mais importantes historiadoras contemporâneas sobre o assunto, inconteste. Mas daí percebemos no seu escrito o ranço branco e acadêmico de dizer ao "outro" como ele deve se comportar, como deve se sentir sobre seu lugar no mundo. Como estamos todos acostumados com os papéis dados a negros, mulheres, pobres, gays, causa espanto a reação às falas de quem sempre pôde falar com autoridade, diante do silêncio dos humilhados. Uma reação dos humilhados e também de muita gente que não quer mais coadunar com a injustiça - talvez uma coisa positiva da pandemia? E aí ocorre uma contrarreação, de brancos acadêmicos que se revoltam com os revoltosos - então os brancos não podem falar mais nada? Como assim, crucificar Lilia Schwarcz? Que atrevimento! E não é mesmo muito ruim esse "clipe" da Beyoncé, credo? E essa estampa de oncinha?
Então, depois de ler uma avalanche de críticas de todo lado, fui ver o álbum visual completo (não é só um "clipe", como muitos acadêmicos disseram), no link enviado por meu amigo Marcelo. E fiquei de cara. Quanta beleza, quanto glamour, quanto trabalho realizado com perfeição! Uma narrativa coesa, bem construída, elenco empoderadíssimo, um look mais lindo que o outro, Beyoncé oxunzando geral, conectada à natureza tão diversa da África, arrasando nas coreografias ou simplesmente reinando em seu trono pop. Fiquei apaixonada, querendo saber mais, de África e da obra de Beyoncé. Claro, a África não é só glamour, não é só consumo, não é só tribo. Mas é tão importante que haja uma mudança de paradigma trazida pela arte, que os negros construam sua visão de si, com todas suas nuances culturais, e não mais carreguem o peso de uma visão alienígena, cheia de preconceito.
Interessante pensar que somente por meio da indústria cultural, nesse episódio Bey x Lilia, o debate sobre o racismo sistêmico tenha alcançado a todas as esferas. Porque no Brasil ele acontece todo dia, toda hora. Na última semana, dois rapazes chamados Matheus foram vítimas de racismo: um deles motoboy, agredido por um sujeito também Mateus, num condomínio no interior de SP, o outro, covardemente encurralado por dois homens num shopping no Rio, quando havia ido trocar um relógio que comprara para o pai. Embora revoltantes, os episódios não chamaram tanto a atenção quanto a querela pop, e são tratados como fatos isolados no racista Brasil (mesmo com o ar de parábola que adquirem, com tantos Mateus reunidos).
O termo representatividade já tem sido contestado por alguns intelectuais, como algo que nega a individualidade. Talvez o mesmo que aconteça quando falamos em "nação", agrupando os desiguais e afastando assim o considerado outro povo. De qualquer modo, ainda acho que é o melhor termo para dar voz e rosto a um grupo, reconhecendo justamente sua especificidade e sua importância. Serve para que negros, mulheres, gays tenham voz e direitos e diferenças reconhecidos. Não para os pobres, que necessitam de uma revolução social que os tire justamente dessa condição, que não é identitária  nem atávica como os poderosos querem fazer crer. 
Somente depois de começar a pensar mais profundamente no racismo contra pessoas negras é que refleti sobre o preconceito sofrido por orientais. Nem ouso comparar, porque são graus muito diferentes. No entanto, cresci vendo o padrão branco como correto. Não havia bonecas japonesas - somente aquelas vendidas como souvenir na Liberdade ou trazidas do Japão por velhos parentes -, nada que se assemelhasse a nós. Durante minha infância, fomos poucos na escola. Somente no ensino médio descobri uma multidão de colegas iguais - e que discriminavam os outros, por sua vez. Até em termos de maquiagem, não havia nada muito específico para as peles amarelas. Quando fiz o curso de maquiagem com uma amiga da Bienal, ela descreveu minha pele como "esverdeada", que eu devia evitar usar verde, azul, vermelho. Fui descobrindo que tons assentavam melhor. Outro dia, li uma matéria sobre maquiagem para peles negras, como isso era importante para a representatividade das mulheres negras que não tinham um nude pra chamar de seu - e que uma marca nacional, Dailus, criou uma linha bem ampla de batons e esmaltes veganos cor de pele. Skin tones. Para todas. Me emocionei, também nunca tive.
Bom, fui atrás da Dailus. Comprei alguns batons, ainda não recebi. Mas achei um esmalte da marca na farmácia outro dia. Já amei. Já me sinto representada. Agora estou atrás de lápis de cor com diferentes tons da pele, para redesenhar o mundo enquanto a revolução não vem.

domingo, 7 de julho de 2019

Moda estandarte


Quando eu era menina, era moda usar macacão. Eu adorava. Tinha um apelo disco próprio da época. Eu tive um de tecido atoalhado verde-água que achava o fino. Tive um xadrez modelo mecânico de oficina. Já na faculdade, fui atrás de um mais curto e larguinho, de veludo cotelê creme. Mandei fazer um de shantung vermelho. Quando não encontrava os macacões, ia de salopete. Meu sonho era a jardineira jeans, mas achava que não me caía bem, por não ser alta e magra. 
O macacão saiu de moda por um bom tempo, e voltou há pouco, algumas vezes como uma peça elegante e sóbria. Mesmo despojado, sempre dá a impressão de uma roupa mais "arrumadinha". Isso para não falar da praticidade. 
No último rolê paulistano, acabei encontrando alguns que, além de elegantes-despojados, trazem ainda por cima uma bandeira linda. São peças do Atelier Luiza Pannunzio, que substituiu suas etiquetas de tamanho por elogios às mulheres, vejam só. Como não são estampados, são peças para durar, não associadas à grande indústria têxtil, e sim feitas de modo artesanal. Para arrematar, diretamente envolvidas com o pensamento de resistência e solidariedade femininas.  
É muito bom usar uma roupa que veste bem, envolve corpo e alma e grita aos quatro ventos a sua verdade - não a de uma marca, mas de uma pessoa. Um estandarte, que veste e revela. 

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Se oriente, rapaz - na cozinha, na vida

 
Os últimos dias na cozinha estão bem orientais. Andei fazendo yakissoba, lámen e hoje foi a vez de uma carne suína com legumes e guioza também de carne de porco. Todos os pratos visando ao aproveitamento de ingredientes - legumes e carnes - antes que se estragassem na geladeira. Para não perder ingredientes, tenho também congelado muita coisa, antes mesmo de processar completamente o prato, porque nem sempre dá tempo de fazer aquela marmita arrumadinha. 
Também rolou esse viés orientalizante porque comprei gengibre fresco e a única bandeja de nirá que achei no supermercado - caríssima, como sempre. 
Vi várias receitas de guioza na internet e peguei uma de massa da Isadora Becker, adaptei a técnica com uma do Prato Fundo e coloquei um pouco de tudo no recheio com a carne já assada e processada de filé mignon suíno: óleo de gergelim, shoyu, gengibre e nirá refogados. Mesmo no caso da massa acrescentei um pouco mais de água (meia xícara de água quente e meia xícara de água fria) e mais farinha (cerca de mais meia xícara de chá). Como fiz duas massas, porque acabou sobrando recheio, também fiz dois tipos de preparo, um tostando os pastéis e depois acrescentando água para cozinhar na frigideira, e outro cozinhando os pastéis como massa de macarrão e depois refrescando em água corrente para congelar, e ainda pude treinar um pouco as dobras. As primeiras ficaram horríveis, as segundas um pouco melhores, mas ainda bem distantes do ideal. 
O recheio de carne suína ficou delicioso, com aquele gosto de comida boa da Liberdade. Como é importante nutrir-se daquilo a que se pertence para nunca perder o rumo!

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Criar para saber-se

Acho que poucas coisas são tão importantes quanto criar. Um ser, um projeto, um prato, o que for. Não simplesmente executar uma tarefa, mas estar presente na concepção/composição/evolução todo o tempo. Respirar junto até que se venha à luz.
Talvez por isso tenha me ocorrido que criar é a melhor forma de saber-se. Quem eu sou? Do que sou capaz? Como minha alma devolve ao mundo o que vejo e sinto? Como sinto o que vejo, o que ouço, o que toco? Minha criação fala por mim.
Já contei aqui que comecei a bordar inesperadamente e sem nenhuma noção do que fazer em seguida. Simplesmente comecei a fazer. Naquele momento, a alma borbulhante pedia linha, agulha e tecido para contar de si, de mim. E eu fui gostando do que via, quase não surpreendida de já ter logo me metido a bordar - como um saber ancestral, atávico, que estivesse lá no fundo guardado, adormecido. Não que haja grande técnica no que faço, mas minha verdade lá está, coloridamente rústica. É o que me basta.
Entonces hoje quis pegar nos paninhos bordados, olhá-los bem de perto, alisá-los. Para saber-me de novo, para lembrar quem sou, de tudo que sou capaz.
E gosto do que vejo no sentido-bordado, e sei-me menina, rio, música, flamboyant.

sábado, 15 de agosto de 2015

Kabuki e o pertencimento

Apesar da minha parcial japonesidad, nunca tinha assistido a uma apresentação de teatro japonês típico, Nô ou Kabuki. Minhas referências eram fotográficas ou musicais (Caetano falando de "kabuki, máscara" ou Gil citando o "teatro Nô, japonês").
Entonces, saindo da aula de fotografia, vi um cartaz com a programação de uma companhia japonesa de kabuki. E alguns dias depois lá estava eu, conferindo ao vivo o que os ancestrais fazem há quatro séculos.
No início, tive medo de que o público fosse desrespeitoso com uma cultura tão diversa como a japonesa, por mais que ela esteja popularizada na comida, nos animes, no karaokê. Algumas pessoas cochichavam, outras tossiam e uma meia dúzia saiu do teatro ainda na primeira parte da apresentação.
Quando anunciaram o intervalo, senti alívio, pois imaginei que era a oportunidade dos descontentes de saírem dali. Mas, para minha surpresa, a esmagadora maioria do público ali ficou, sem nem se levantar para o intervalo.
Havia, sim, trechos falados/cantados em japonês, que lembravam um pouco aquelas novelas japonesas transmitidas por algum canal nacional. Mas os gestos e a dança, valorizados pela luz e alguns efeitos simples e incríveis (como a teia de aranha feita de mil fios lançada pelo vilão), eram delicados, precisos, lindos. Fujima Kanjuro, despido de máscara e roupas extravagantes, envergando apenas kimono, elegantes calças hakama e meias, transformava a realidade ao redor com movimentos que pareciam mínimos, mas eram plenos de gestos e significados. Houve um momento em que me lembrei do flamenco, pelo girar das mãos, pela batida (muito mais contida, é verdade) dos pés no chão. Creio que, principalmente, pela intencionalidade.
De novo, de algum modo e emocionada, entendi tudo. Algo lá dentro dizia que aquilo pertencia a mim, que eu pertencia também àquela beleza.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Pertencimento

Com essa história do sumiê retornam as questões de pertencimento. Quando vou à Liberdade (como hoje, quando fui à Livraria Sol para comprar um pincel), sempre tenho a sensação de fazer parte daquele universo oriental. Puxo papo com as vendedoras, senhorinhas japonesas que lembram minha mãe, e tenho certeza de que elas não entendem meu olhar enternecido. Mesmo sem falar japonês, sem partilhar de todos os costumes, uma centelha de mim reacende quando boto os pés ali. Talvez por isso o origami  e o judô, tão tardios, tenham parecido "naturais" quando aconteceram.
Também sinto o mesmo quando visito o Nordeste, claro. Parece que estou na sala de casa, tomando fresca com as portas abertas. Rio de felicidade, quase sentindo o vento no rosto, ao ouvir uma expressão conhecida desde a infância - "parado como um dois de paus", "malajambrado", "cabaré de asa", "sururu de capote". Fico muito, muito à vontade. E é essa sensação de estar à vontade na própria pele que eu chamo de pertencimento. Como é boa, como é fundamental!
Clarice Lispector tem um texto lindo sobre pertencer. Foi originalmente publicado no JB, como crônica, e depois na coletânea A descoberta do mundo. Ela diz que pertencer vem muitas vezes de sua força, e não de depender de alguém mais forte - deseja pertencer para que sua força "não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa". Para não ficar com um presente embrulhado nas mãos sem ter a quem presentear. Não seria por acaso um dos aspectos da graça?
Ao final, Clarice fala, ao descobrir que pertencer é viver, de uma sede infinda, como quem, no deserto, bebesse as últimas gotas de água de um cantil. Aqui, agora, enquanto escrevo, imagino que viver/pertencer é mais como no deserto carregar um jarro d'água, que poderia derramar quando tropeçamos ou ir-se esvaziando quando damos de beber a alguém - mas, quase milagrosamente e ao mesmo tempo, vai se enchendo novamente da água trazida por outro passante. De forma abundante, até o fim.

domingo, 4 de março de 2012

Singularidades de um bairro - Liberdade

Domingo é dia da disputada feira da Liberdade. Tudo bem ficar de pé para comer guiozas ou bifum, debaixo do sol, se não quiser almoçar em algum restaurante típico. Depois é só tomar um Melona enquanto xereta as barraquinhas e lojas de cosméticos, de quinquilharias e artigos para casa. Ou comprar gulodices importadas dos Tigres Asiáticos nas mercearias da Galvão Bueno e rua dos Estudantes. Apreciar as belas flores e plantinhas vendidas por quem tem dedo verde, utensílios feitos de bambu ou patchwork caprichado. E curtir a simpatia de batians e ditians, sorridentes e sábios, uma fofura (impossível não me enternecer e pensar nos avós que não curti).
Ouvir músicos populares, tirar a sorte no realejo. Comprar mangás e papel para origami (que tal os da Livraria Sol?). Tomar um café acompanhado de um doce irreal de tão bonito, na confeitaria Alteza, ou um mais hardcore, grandão, da Bakery Itiriki. Namorar os lindos futtons e porcelanas na vitrine, admirar a variedade de luminárias e kimonos para todos os gostos e bolsos. Aliás, todos os gostos moram na Liberdade - que nome melhor para um bairro onde cabem todas as tribos?


Luminárias "ancestrais" convivem com linhas "modernas"; gente de toda parte passeia pela feira; lindo patchwork; ficar de pé para almoçar faz parte do programa; cores fortes em frutas e verduras (algumas identificadas somente por connaisseurs!); Liberdade para todos os gostos e sons (atenção à energia do cantor popular); um traço de passado no realejo; fofura do dia, o encantamento da garotinha diante do paso doble do pajarito que leu a sorte para nós.




Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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